Humor à Primeira Vista

Joana Gama: “Nos momentos mais depressivos da minha vida o que me salvou foi fazer graças sobre isso”

Uma das únicas coisas que Joana Gama sabe - de que tem mesmo a certeza - é que não sabe ser. Vai estrear no final de março, em Lisboa, “Não sei ser”. Um espetáculo de stand-up comedy a solo no qual promete abordar as “convenções e imposições sociais que a tornam desconfortável” e onde até pode surgir uma placa de indução em palco. De regresso à rádio nas manhãs da Antena 3, vai também entrar em tour pelo país com o espetáculo “Comedy Therapy”, com os humoristas André de Freitas, David Cristina e Pedro Alves e a psicóloga clínica e sexóloga Tânia Graça. Um espetáculo em que tentam resolver os problemas trazidos pelo público, mas acabam por falar dos seus. No seu regresso ao “Humor À Primeira Vista”, com Gustavo Carvalho, fala sobre as suas inseguranças na comédia e de como aceitou o improviso como uma virtude, conta-nos a aventura de fazer stand-up em francês e explica-nos de que forma a comédia lhe “salvou a vida”

Quando há um público fiel, quando se criam nichos, que é o teu caso, até já se podem fazer piadas internas e toda a gente vai perceber. Mas por outro lado, até que ponto é que como comediante não queres chegar a mais gente, a outras pessoas?
O Guilherme Duarte uma vez disse-me isto (não sei se é uma coisa que ele acredita para ele próprio ou não). Nós só precisamos de mil pessoas que gostem do nosso trabalho. E vivemos muito bem a partir daí, nem que seja a vender uma t-shirt a cada um, a vender um bilhete a cada um três vezes num ano (...) acho que ter mais gente a seguir o meu trabalho implicava às vezes um corte e costura que não estou disposta a fazer. Ou seja, editar-me um bocado, usar outros ângulos.

Já deste a entender que te resolveste com algumas incertezas que tinhas em relação à tua comédia. Principalmente aquela questão do improviso. Quais são as inseguranças que ainda tens?
Tenho muito medo - e devia estar-me a cagar para isso, mas no fundo se for sincera não estou - tenho muito medo que toda a gente nas minhas costas diga que sou péssima comediante. Tenho imenso medo que isto seja só uma questão de representatividade. Ou que seja porque tenho likes no instagram. Do género: "Bora convidar a gaja, que ela faz uma divulgação aqui à cena." Ainda não consegui acreditar, é síndrome de impostor.

Normalmente há aquela frase, um pouco clichê, de que a comédia pode ser uma forma terapia. Tu já sentiste isso? A comédia já foi para ti terapia de alguma forma?
A comédia acho que foi o que me salvou a vida. Estou a falar a sério, nos momentos mais depressivos da minha vida o que me salvou foi fazer graças sobre isso, e fazer as outras pessoas rir relativamente a isso. Mesmo na minha vida pessoal, junto dos meus colegas e tudo o resto. Depois, acho que rir ajuda, como é óbvio, nem que seja a relativizar e a não se levar tanto a sério. Por exemplo, num dos espetáculos de "Comedy Therapy" uma das raparigas disse que tinha sido violada, que contou ao pai e que o pai tinha dito: "Bem, ao menos não passaste uma vergonha em frente às pessoas." Isto é duro, é muito pesado. E conseguimos fazer humor com isso, conseguimos gozar com a situação, conseguimos gozar com ela, conseguimos gozar com o pai e no final recebemos uma mensagem a dizer: "Obrigada, fizeram-me rir e fizeram-me sentir mais normal e mais aceite". Ainda que isso passe depois de dois dias, já fizemos ali alguma coisa.

Digo na introdução que o "Não Sei Ser" é o teu primeiro solo.
Não sei.

Nem isso sabes?
O que é um solo?

A minha definição seria: um espetáculo com um humorista a fazer stand-up em palco, sozinho, e que seja mais ou menos uma hora, 45 minutos de texto criado por si.
Então é o segundo.

Então, qual é o primeiro?
O primeiro foi o “Diagnóstico”, então. Foram duas sessões na Boutique da Cultura, em Carnide. E na altura não chamámos solo de stand-up por uma questão de falta de confiança. Porque eu não fazia stand-up regularmente há algum tempo. Acho que foi uma forma que, tanto eu como a malta da Setlist [produtora], arranjámos de nos proteger um bocadinho.

Porque é que não tinhas essa confiança na altura para assumir: "Este é o meu primeiro solo"?
Primeiro, ainda estava a tentar perceber se aquilo que fazia era stand-up. Estou rodeada de pessoas que são muito puristas na questão da stand-up comedy e tudo aquilo que seja crowdwork com mais um bocadinho de improviso as pessoas dizem: "Ai, isso é mais storytelling. Não é stand-up." E portanto incorporei um bocadinho esses preconceitos e senti que talvez não estivesse à altura de ser mesmo efetivamente um solo. Mas depois cheguei à conclusão de que sim, saquei uma hora de texto, saquei uma hora também de improviso e não sei porque é que hei de olhar para a minha capacidade de improviso cómico como um problema. Temos muito também esse preconceito na comédia do teatro de improviso. Uma coisa não tem a ver com outra. Estar no palco e saber dar a volta e adicionar novas camadas no momento até é uma skill. [Fazer] Só texto, apesar de ser aquilo que é bem visto, até revela, a meu ver, alguma limitação nas capacidades.

Porquê?
Porque sinto que, se estás em palco (...) a revelar-te, se estás a falar dos teus pensamentos, porque é que só aquilo que está planeado é válido? Continuo a ser eu mesma em palco. E aquilo vem de um sítio em que nem tudo é matemático, nem tudo está previsto. Acho que há vários tipos de comediantes. Acho que era o George Carlin cuja escrita era super matemática e ritmada. E muitos comediantes são assim: "Esta one-liner tem de estar aqui. Já não tenho piada há dez segundos. Esta punchline tem de fazer callback." Sinto que isso é uma arte, a escrita, sem dúvida, mas sentir o ritmo enquanto se lá está também. E quando é que se deve pegar o público ou não, estar atento às pessoas e ver quem é que vou buscar, quem não vou, isto tem graça, isto não tem. Acho que também é uma capacidade que não anula a outra. E essa é a minha melhor capacidade, e não o escrever texto. Portanto, sentia-me um pouco não legitimada por causa disso, por não ser ótima a escrever texto. E sentia-me palhaça por fazer uma entrega mais momentânea. Ou até mais física, isso é mal visto.

José Fernandes

Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios:

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: gcarvalho@impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate