Começaste no hip-hop, como M7, quando passas para a comédia vens da internet para os palcos. És mulher, falas sobre sexo, sobre relações de forma aberta, explícita. Achas que és uma outsider no meio da comédia?
Já desconfiava, sentia assim que os humoristas ou comediantes de raiz, aqueles que fazem o trajeto sem vir da internet, fazem os bares e ganham aquele calo (e que é todo um culto, que eu amo e respeito). Tem que ver um bocado com o hip-hop. Ou vens do underground, vens de raiz, ou soltas um hit e é logo sucesso. Aí tu furas a fila e vais logo para grandes palcos e festivais. E há sempre um odiozinho de quem começa de baixo e vai lutando e suando até chegar aos grandes palcos. Ficam um bocado naquela: "Então este não tem aquele calo, não tem o respeito." E sentia que se calhar os 'humoristas reais' não me respeitavam. Ou tinham um bocadinho de "ressabianço".
Mas sentes-te ainda uma outsider? Este já é o teu segundo espetáculo a solo.
Cada vez mais provo a mim própria, que é o que interessa, que sou capaz, que consigo e mereço o lugar onde estou. Síndrome de impostora, sempre. As mulheres têm muito mais isso: "Ah, estou aqui por sorte". Ou estão sempre a dizer que dormiu com alguém, ou porque é mulher e está fixe para mulher. Já no rap eu sentia isso, no humor para mim não é novidade. Não me apoquenta. No rap apoquentava-me porque era chavala, tinha 15 anos. Agora já estou habituada, já passei por isso. Cada vez mais sinto que mereço estar aqui, trabalho para isso, e as pessoas gostam de mim. Lamento, não tenho culpa.
A Capicua escreveu há uns dias no JN um texto sobre as mulheres na comédia. Falava de ti, na Joana Marques, Ana Galvão e Inês Lopes Gonçalves com o "Extremamente Desagradável", da Mariana Cabral, da Inês Aires Pereira e da Raquel Tillo, que estão com o espetáculo "Nem a Ponta do Mindinho". E todas vocês andam a esgotar salas pelo país. Até foram às ilhas. Esta pergunta é um bocado provocatória. Com estes exemplos de mulheres que já estão firmadas na comédia, cada uma com o seu estilo, com a sua linguagem, porque é que ainda é importante fazer uma comédia feminista?
Porque há quarenta mil homens e só quatro mulheres estão com protagonismo e debaixo do holofote. É só isso. Estão sempre a empurrar do tipo: "Estão aqui três ou quatro? Ui, já está muita mulher." Se estão cem mil homens também vão caber cem mil mulheres, estás a perceber?
Há uns dias o Ricardo Araújo Pereira falava da ideia de 'bater' nos mais fortes (punching up) e não nos mais fracos (punching down). E ele deu o exemplo da Jada Smith, mulher do Will Smith, por causa da piada do Chris Rock nos Óscares. Por ela ser uma mulher negra e ter alopecia, pensaram na piada como punching down. Ainda assim, tendo em conta o contexto, é uma atriz que estava na primeira fila dos Óscares, portanto é privilegiada. Podia ser considerado punching up também. Nesses casos, como é que definimos o que é punching up e punching down?
Mas eu não sou assim tão rigorosa. Não defendo tabus no humor, acho que podes fazer piadas de tudo. E também podes fazer piadas com as minorias. O [Dave] Chappelle é o meu favorito pela base de hip-hop que ele tem. A pausa dele, os silêncios dele. É muito forte. Ele não se atropela, deixa respirar muito, ele fuma.
Sinto que vem aí um "mas".
Ele ataca muito, ou é acusado, não sei se ataca... Ele deixa muitas coisas abertas, ele não as fecha propriamente. Apesar de que ele também admite o quão fechado é em determinados assuntos. Ele mandou uma dica relativamente ao aborto: "Mulheres, vocês têm todo o direito de querer abortar ou não, é uma decisão vossa. Agora, na hora de pedir pensão, nós também temos o direito de abrir a carteira ou não abrir a carteira". Não concordo com isso.
Mas achaste graça?
Não foi a piada a que achei mais graça dele, mas não vou crucificá-lo. Não me identifico, percebi qual era piada, mas até pode dar problemas, porque há uma quantidade de homens que não assumem os filhos. É um problema porque não pagam pensão
Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios:
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