Duarte Correia da Silva: “É muito melhor transformar uma coisa que não tem graça do que aproveitar uma coisa engraçada”
Duarte Correia da Silva leva-nos pelas dificuldades de encontrar a forma certa para falar sobre a morte da sogra, explica como a comédia o ajudou a processar toda a situação e revela de que forma quer abordar a “stand-up comedy”. Neste episódio do podcast “Humor à Primeira Vista”, regressamos ao formato “É só uma piada”, onde desconstruímos piadas com os próprios autores
Duarte Correia da Silva reparou que, após a morte da sogra, era perseguido por séries e filmes. Havia sempre uma personagem que morria, alguém tinha uma doença terminal, até as comédias teimavam em recordar-lhe a realidade. Assim surgiu o texto mais “complexo” do espetáculo “Zé Ninguém”, o seu primeiro solo de “stand-up comedy”, disponível no YouTube.
Queria primeiro perceber, porque este é um “bit” sobre uma pessoa em específico, qual era a tua relação com a tua sogra? Era muito próxima, primeiro porque tive uma relação com a minha sogra para aí de seis, oito anos. Desde que comecei a namorar com a minha mulher atual. E tivemos alguns percalços pelo caminho. Eu e a minha mulher acabámos a dada altura, a relação nem sempre foi fácil, e ela foi a primeira pessoa que me aceitou de facto como parte da família. A minha porta de entrada sempre foi através dela e por isso tinha uma boa relação. Quando nós casámos ela já estava doente. Quem diz que o noivado é uma coisa bonita está enganado. Há sempre atritos, porque as famílias ou querem fazer de uma maneira, ou querem fazer de outra. Por isso tivemos uns mini conflitos, mas acho que isso só estrutura a relação. Saímos os dois a ganhar, acho eu.
Como é que foi a tua reação à morte da tua sogra? Pensaste logo numa perspetiva de comédia? Não, zero humorístico, zero comédia, não estava nem a pensar para aí. Aliás, o meu ponto de partida do bit foi ao contrário. Foi: “Morreu a minha sogra e não há maneira nenhuma do mundo me deixar superar isto, me deixar andar para a frente”, porque constantemente traz isto de volta à minha vida. Principalmente pela minha mulher. Queremos livrar-nos dos fantasmas, mas não há maneira.
Só mais à frente é que comecei a pensar: “Tenho aqui uma cruz às costas que não consigo largar. Vamos desconstruir isto, trazer de volta a origem. Qual é que é o verdadeiro problema disto?”.
Mas então em nenhum momento, quando a situação começa a ser recorrente e até os filmes e as séries te perseguem, não te deu logo o clique para a comédia? Demorou... médio. A certa altura eu tirei essa nota, porque o ponto de partida é sempre esse, tenho notas infinitas com coisas para fazer. Mas eu queria que fosse feito dentro de moldes que achasse aceitáveis. Não queria fazer um bit de humor negro a brincar com cancro, a brincar com morte. Não era sobre isso. Eu queria fazer uma pseudo-homenagem à minha sogra através da presença que ela ainda faz sentir na minha vida. Por isso o que mais demorou, para mim, foi arranjar o ângulo. Ou seja, eu tinha: “Não consigo ver nada na Netflix”... E depois como é que desato este nó? Foi o mais difícil.
Este é o melhor “bit” do espetáculo? Acho que é. É mais complexo, tem outra densidade e saiu-me do pêlo. Eu não fechei o espetáculo até conseguir fazer aquilo. Tinha vontade de fazer uma coisa que eu achasse que tinha gosto, que não era gratuita, sobre morte e que preenchesse ali um espaço que faltava. O meu sogro foi ver na estreia e no final do espetáculo a única coisa que disse foi, e isso tem muita piada: “Tu fazes um espetáculo à base da minha filha, da minha neta, da minha mulher, falas sobre o meu trabalho (ele é enólogo), e eu não recebo um tusto”. O espetáculo é muito sobre mim, como eu vejo o mundo à minha volta e tudo aquilo faz parte da minha vida, da minha realidade e daquilo que se passou comigo durante a covid-19. Por isso sim, estou muito satisfeito.
Disseste que não querias falar deste tema de forma gratuita. Achas que isso acontece às vezes em espetáculos de “stand-up”? Já viste “bits” sobre isto em que pensaste: “Não é bem por aqui que eu quero ir?” Já, já pensei. No processo de elaboração disto andava a ver coisas, até coisas mais negras e tudo. E pensava que eles até tocavam no assunto mas não era isso que queria. “De que forma é que vou fazer isto?” Até porque eu não queria que o centro do “bit” fosse o cancro.
E não é. Exatamente. A minha ideia era: “Qual é que é o lado mais cómico de a minha mulher ter ficado sem mãe? O que é que isso trouxe de humorístico à minha vida?” Ou seja, de que forma é que virámos o sofrimento ao contrário?
Passado este tempo, sentes que ajudou de alguma forma a processar a situação? Sem dúvida.
Para ti e para a tua esposa? Não, acho que isto é completamente uma experiência egoísta. Cada um leva os seus macaquinhos no sótão para palco. Foi uma das maneiras que arranjei para processar tudo aquilo que me tinha acontecido.
Já tinhas sentido que a comédia podia ajudar a fazê-lo noutras situações, noutros “bits”? Ou foi a primeira vez que pensaste nisto? Acho que penso bastante nisso. Porque acho que é muito melhor transformar uma coisa que não tem graça numa coisa que tem graça, do que tentar aproveitar uma coisa engraçada. Se te cruzares com uma pessoa que escorrega numa casca de banana e quiseres contar isso em palco, provavelmente vais acabar a dizer aquela famosa frase: “Vocês não estavam lá, mas teve piada na altura”. Por isso, ou és um grande contador de histórias ou as pessoas não se prendem.
Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios:
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