Partidarização do Tribunal Constitucional e seus perigos
O Tribunal Constitucional não é inimigo da democracia – constitui o seu derradeiro bastião contra os excessos de quem, transitoriamente, exerce o poder.
Bastonário da Ordem dos Advogados
O Tribunal Constitucional não é inimigo da democracia – constitui o seu derradeiro bastião contra os excessos de quem, transitoriamente, exerce o poder.
A recente decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a Lei dos Estrangeiros revela um padrão preocupante de instrumentalização da justiça constitucional por interesses partidários.
Mais gravoso ainda é o silêncio ensurdecedor sobre uma questão fundamental: o TC não declarou inconstitucional o direito ao reagrupamento familiar para portadores de Golden Visa e trabalhadores altamente qualificados.
Esta omissão deliberada no debate público revela a natureza seletiva e ideologicamente enviesada tanto das reações partidárias à decisão como da narrativa pública que se quis impor.
O acórdão 785/2025 é cristalino na sua formulação: os titulares de autorizações de residência ao abrigo dos artigos 90.º, 90.º-A e 121.º-A mantêm o direito ao reagrupamento familiar sem os constrangimentos temporais impostos aos restantes imigrantes.
Falamos dos Golden Visa, dos trabalhadores altamente qualificados e dos portadores de Cartão Azul UE.
Para estes, segundo o TC, a Constituição não constitui obstáculo, desmentindo a narrativa de que se trata de uma decisão judicial de “esquerda”.
Esta distinção constitucional, que o TC julgou legítima, revela uma hierarquia migratória que as forças políticas preferiram não abordar nas suas declarações iniciais.
Observemos as múltiplas leituras de uma mesma decisão constitucional. Ecoam acusações de "espírito de esquerda" contra o TC, esquecendo-se que dois juízes nomeados pela “direita” votaram pela inconstitucionalidade. Enquanto uns celebram uma "vitória da justiça", outros exigem soluções "urgentes e rigorosas".
Esta ginástica retórica expõe o cerne da questão: nenhum ator político demonstra interesse genuíno em debater os princípios constitucionais subjacentes, privilegiando o cálculo eleitoral.
A justiça constitucional torna-se refém desta instrumentalização partidária.
Mais preocupante é a emergência de um discurso que questiona a legitimidade do próprio Tribunal Constitucional. Ouve-se falar do "espírito de esquerda que se apoderou das instituições", ecoando estratégias populistas internacionais que visam desacreditar os órgãos de controlo constitucional quando estes não servem os interesses do momento.
Esta retórica não é nova nem exclusiva de uma única família política.
Durante a troika, quando o TC validou certas medidas de austeridade que considerou constitucionais, também a esquerda atacou sistematicamente o tribunal. Surgiram então acusações de que o TC estava a "governar contra a Constituição" e de ter "conivência" com políticas que violavam direitos fundamentais.
Agora, do outro lado do espectro político, insinua-se a necessidade de alterar a Constituição para "refletir os valores das últimas eleições", como se a lei fundamental fosse refém das maiorias ocasionais e não protegesse precisamente as minorias contra os excessos dessas mesmas maiorias.
A qualidade de uma democracia mede-se não pela capacidade de as maiorias imporem a sua vontade, mas pela proteção que oferece aos direitos fundamentais contra os excessos maioritários.
O Tribunal Constitucional não "deu à esquerda a maioria que o povo lhe tirou" - defendeu princípios constitucionais que entendeu transcenderem as colorações partidárias.
O reagrupamento familiar não é uma concessão política, mas sim um direito fundamental que o TC considera estar consagrado na nossa Constituição e em tratados internacionais ratificados por Portugal.
A sua regulamentação deve obedecer aos princípios da proporcionalidade e da dignidade humana, não às flutuações da opinião pública ou às conveniências eleitorais.
Não podemos permitir que o Direito se torne refém de narrativas partidárias ou que a Constituição seja questionada sempre que não serve interesses políticos imediatos.
A decisão do TC deve ser analisada pelos seus méritos jurídicos, não mediante ataques ad hominem aos juízes ou especulações conspiratórias sobre "espíritos de esquerda".
Quando há discordância com a interpretação constitucional, o caminho democrático é o diálogo institucional respeitoso, não a desacreditação sistemática dos órgãos de soberania.
A democracia portuguesa está suficientemente madura para suportar este debate. O que não pode tolerar é a erosão da confiança nas instituições que a protegem.
O Tribunal Constitucional não é inimigo da democracia – constitui o seu derradeiro bastião contra os excessos de quem, transitoriamente, exerce o poder.
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