Todos os anos, o inverno traz consigo um aumento previsível da procura pelos serviços de saúde. As situações de doença aguda — tanto nos Cuidados de Saúde Primários como nos serviços de urgência hospitalar — atingem o seu pico, pressionando os profissionais e o sistema no seu conjunto. Este é um desafio cíclico e conhecido, que deveria ser enfrentado com planeamento e medidas sustentadas. No entanto, continuamos a reagir em vez de antecipar.
O recente Despacho n.º 14212-A/2024, de 29 de novembro, procura organizar a resposta à sobrecarga sazonal. É importante reconhecer o esforço do despacho. A criação de matrizes de resposta e a tentativa de melhorar a gestão das situações de doença aguda são passos na direção certa. Mas será suficiente? O planeamento de medidas estruturantes não pode ser feito no final de novembro, quando a pressão já se faz sentir. Antecipar é essencial.
Recursos humanos em queda: onde estamos e para onde vamos?
Em outubro de 2024, existiam 5.413 Médicos de Família no Serviço Nacional de Saúde, menos 50 do que no mesmo período do ano anterior. Esta diminuição ocorre num contexto em que cerca de 1,5 milhões de utentes continuam sem médico de família atribuído. Apesar desta escassez de recursos, os médicos de família realizaram, em 2023, 35 milhões de consultas, das quais mais de 12 milhões corresponderam a situações de doença aguda.
No mesmo período, os serviços de urgência hospitalares realizaram cerca de 6 milhões de atendimentos, sendo que 2 milhões foram classificados com prioridades azul e verde. Embora o número total de episódios de urgência não tenha aumentado nos últimos anos, o tempo de espera para observação no serviço de urgência tem registado um aumento significativo.
Os alargamentos de horário revelam-se questionáveis, dado que mais de 80% da população tem acesso a consultas nas USF das 8h às 20h e a maioria dos atendimentos ocorre durante a manhã ou o início da tarde, principalmente às segundas-feiras. Curiosamente, aos fins de semana, apesar de parte dos centros de saúde estarem encerrados, não se verifica um aumento significativo do fluxo de utentes nas urgências. Pelo contrário, os fins de semana apresentam, em média, menos episódios de urgência.
A importância da literacia em saúde e das condições sociais
Antes de discutirmos os desafios internos do sistema, é necessário lembrar o papel dos cidadãos. Muitas situações de doença aguda podem ser resolvidas com autocuidados e o apoio adequado. Nem todas as doenças necessitam de uma ida às urgências. Um simples telefonema para a linha SNS 24 pode evitar deslocações desnecessárias, reduzir filas de espera e garantir que os recursos são utilizados por quem mais precisa. É um gesto simples, mas poderoso. Promover esta literacia em saúde deve ser uma prioridade constante. Quando a população está informada, o sistema ganha em eficiência e sustentabilidade.
No entanto, parece que, em termos de literacia, perdemos alguns dos ensinamentos que a pandemia nos trouxe. É fundamental reintroduzir a cultura de proteção e responsabilidade individual, como o uso de máscara em caso de sintomas de infeções respiratórias. Estas práticas simples podem reduzir significativamente a propagação de doenças e aliviar a pressão sobre os serviços de saúde.
É necessário relembrar que as condições socioeconómicas desempenham um papel fundamental e que medidas sociais que promovam o aquecimento das habitações e a melhoria das condições de vida da população mais vulnerável podem reduzir a incidência de doenças respiratórias e cardiovasculares no inverno. Estas intervenções, embora fora do âmbito direto dos serviços de saúde, têm um impacto significativo na procura e sobrecarga dos mesmos.
Consultas Extra: Um Desafio Impraticável?
O despacho sugere a criação de consultas extra para responder à doença aguda. Contudo, há uma questão incontornável: como criar mais consultas com os mesmos recursos? Os médicos de família já trabalham no limite, com agendas preenchidas por consultas programadas e o seguimento de situações igualmente prioritárias.
Portanto, teríamos duas situações possíveis: ou diminuir a resposta às situações programadas, aumentando o tempo de espera para consulta e entrando em incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos, ou então alongar horários.
Se se pretende aumentar o número de consultas, será necessário alongar horários. Nesse caso, onde estão as medidas de suporte? Há previsão de pagamento de horas extra ou reorganização logística?
Infelizmente, o despacho não menciona o reforço das equipas nem a contratação de profissionais adicionais. Ao pedir aos mesmos profissionais, já sobrecarregados, que façam ainda mais, sem oferecer condições adicionais, o resultado é previsível: maior cansaço, maior exaustão e, inevitavelmente, impacto na qualidade dos cuidados prestados.
A Solução Não Passa por Reinventar a Roda
Todos os anos enfrentamos os mesmos problemas e, no entanto, falhamos em resolvê-los de forma sustentada. A roda não precisa de ser reinventada; precisa de peças novas. Este cenário recorrente exige um planeamento robusto e o reconhecimento de que a qualidade dos cuidados depende da valorização e do apoio aos profissionais de saúde.
Consultas Abertas Hospitalares: Uma Resposta Sustentada
A implementação de consultas abertas nas consultas externas hospitalares constitui um exemplo concreto de uma solução já identificada, mas ainda por aplicar. Doentes com doenças respiratórias, cardíacas, oncológicas, doença mental ou grávidas em acompanhamento hospitalar acabam por recorrer às urgências em situações de descompensação. Tal não ocorre por opção, mas pela ausência de acesso a uma resposta organizada e célere.
Tal medida foi proposta em Planos de Negócios de várias Unidades Locais de Saúde. mas permanece por implementar. As Unidades de Saúde Familiar (USF), com a sua experiência em flexibilidade e gestão sensível às necessidades agudas, poderiam inspirar uma oferta programada e adaptada nas consultas externas hospitalares, garantindo uma resposta eficaz e organizada às situações urgentes.
Medicina geral e familiar: A base do sistema
A Medicina Geral e Familiar é a base do Serviço Nacional de Saúde. É aqui que se promove a saúde, se previnem doenças e se garantem cuidados continuados. Para que esta missão se cumpra, é essencial que os profissionais sejam cuidados. Pedir mais aos mesmos, sem reforço de equipas nem medidas de suporte, torna-se insustentável. Esta pressão poderá resultar num declínio da qualidade assistencial, com repercussões significativas para os utentes a médio e longo prazo.
A cobertura total da população por médicos de família é uma condição primordial para a gestão eficiente da patologia aguda em ambulatório. Sem este alicerce, qualquer estratégia carece de eficácia. É imprescindível aumentar o número de médicos de família disponíveis, organizados no modelo que já demonstrou apresentar maior eficiência no SNS, o modelo USF.
Se queremos enfrentar o inverno com um sistema de saúde robusto, é necessário planear com antecedência, investir nas equipas e implementar soluções sustentáveis. Um sistema de saúde forte precisa de profissionais valorizados e de medidas que traduzam intenções em ações eficazes.
O recente despacho aponta na direção certa, mas as boas ideias não se transformam em boas práticas sem os recursos humanos e logísticos necessários. Este inverno, os médicos de família e restantes profissionais de saúde darão novamente o seu máximo. Mas não podemos continuar a pedir mais aos mesmos. A saúde dos portugueses não pode depender de medidas de última hora. Merece um plano sólido, profissionais valorizados e um Serviço Nacional de Saúde preparado para os desafios previsíveis.
Que o inverno que enfrentamos todos os anos seja, finalmente, uma oportunidade para aprender e melhorar, e não apenas mais uma crise adiada.