Crónica

O que é que está a acontecer com os calendários do advento?

A Rituals inclui produtos em tamanho de viagem ou real (€99,50 ou €149,50, perfumarias e rituals.com) e iluminação do calendário-árvore de Natal
A Rituals inclui produtos em tamanho de viagem ou real (€99,50 ou €149,50, perfumarias e rituals.com) e iluminação do calendário-árvore de Natal

Na crónica ‘Sem Preço’ desta semana, a jornalista Catarina Nunes escreve sobre como um ritual litúrgico é apropriado por marcas de beleza e luxo

O que é que está a acontecer com os calendários do advento?

Catarina Nunes

Jornalista

Não serei a única com memórias felizes associadas ao desvendar do calendário do advento, à expectativa de descoberta diária de um novo chocolate, em contagem decrescente para o Natal. Este ritual de origem cristã, na verdade, não pressupõe a presença de chocolates e muito menos a infinidade de marcas de luxo que se têm ‘colado’ ao início do novo ano litúrgico do cristianismo ocidental.

Os chocolates da nossa infância há muito que estão em segundo plano. Salta à vista este ano a profusão de calendários do advento de beleza, em particular no luxo onde se encontram cada vez mais propostas com produtos de outros segmentos. A título de curiosidade, entre os mais inusitados e caros da última década encontram-se o calendário do advento da Chronext, em 2020, com 24 relógios de luxo (1,51 milhões de dólares/€1,45 milhões) e, dez anos antes, em 2010, o da Porsche (1 milhão de dólares/€950 mil), com um speedboat e uma cozinha incluídos, entre outras extravagâncias com o selo e design da marca de automóveis.

Na Venchi, criada em Itália em 1878, a tradição é modernizada com chocolates sem glúten (€14,45, El Corte Inglés)

O crescimento da procura de cosmética e de marcas de luxo - que se mantém em alta desde o início da pandemia, é parte da justificação para a aposta num formato que nasce há pouco mais de um século, apenas para contar os dias do advento e focado na educação religiosa. Na época, por trás de cada janela numerada e fechada apresentavam-se versículos da bíblia, nada de chocolates, que são uma introdução atribuída à Cadbury, nos anos 1950, em Inglaterra. A atual apropriação do advento cruza outras variáveis: o desejo de consumo inerente ao Natal e as estratégias de marketing que capitalizam o espírito da época, aproveitando as memórias emocionais despertadas com o calendário e a posição dos dias do advento nos planos comerciais. Vamos por partes. O advento assinala o tempo de preparação e expectativa até ao nascimento de Jesus Cristo. Começa no quarto domingo antes do Natal (este ano a 27 de novembro), mais ou menos ‘colado’ ao Dia de Ação de Graças (na quarta quinta-feira de novembro) e, dependendo dos anos, na continuação ou em sobreposição com a euforia consumista da Black Friday, da Cyber Monday e da Cyber Week.

A fachada da casa-mãe Dior, em Paris, e o céu que assinala a estrela do Norte escondem 24 artigos com 4/20ml e 35/85gr (€490, edição limitada, dior.com)

Estas iniciativas, também recentes em Portugal, marcam o início das atividades comerciais natalícias, em que o calendário do advento é uma forma de alimentar a roda do consumo nesta época. É mais um produto que, na verdade, contém vários produtos, normalmente em amostras ou em formatos reduzidos. Este último detalhe é a parte da chave que torna os calendários de marcas de luxo tão apetecíveis, quer para os consumidores como para as marcas. Os primeiros têm contacto com entre 24 a 27 produtos diferentes (dependendo do calendário), por um valor inferior ao preço real do tamanho normal de cada produto, possibilitando uma experimentação alargada a custo reduzido. Este aspeto, no entanto, não é linear, como comprova o calendário de 825 dólares (€800) da Chanel. Já lá vamos.

A Acqua di Parma opta por uma caixa de chapéus com 25 artigos, entre perfumes e velas (€460, edição limitada, El Corte Inglés)

Do lado das marcas e dos retalhistas, há a possibilidade de transformar amostras em algo vendível e apetecível no Natal, angariar futuros compradores dos produtos em tamanho real e ganhar visibilidade através dos ‘unboxings’ nas redes sociais, durante 25 dias seguidos e com apenas um produto. Mas neste raciocínio, que parece não ter pontas soltas, é possível dar um tiro no próprio pé. A tiktoker Elise Harmon, no ano passado, inicia nas redes sociais uma onda contra a Chanel, ao publicar vídeos a abrir o calendário da marca francesa e a deparar-se, maioritariamente, com autocolantes, miniaturas de cremes, pulseiras de fios, correntes e ornamentos de Natal. Tudo com um valor total muito inferior ao custo do calendário, os ditos 825 dólares/€800.

A Chanel cria polémica nas redes sociais em 2021, por incluir autocolantes e outros artigos com pouco valor no seu calendário de €800

O presidente da Chanel, Bruno Pavlovski, apressou-se a explicar que o calendário, com o formato do frasco do Chanel Nº5 em tamanho gigante e criado para assinalar os 100 anos do perfume, apresenta um “design único e conteúdo original”, que o torna numa “peça de coleção cujo valor não pode ser somado pelos produtos que contém”. Pois… A Chanel lamentou a situação e garantiu que no futuro será mais cautelosa. Tão cautelosa que no momento em que escrevo esta crónica, não tem à venda, pelo menos na Internet, um novo calendário para este ano.

A Montblanc apresenta-se com o que sabe fazer, instrumentos de escrita, artigos em couro e acessórios de escritório (€5.200, limitado a 100 unidades, lojas Montblanc e montblanc.com)

Na génese, o calendário do advento também tem as suas polémicas. Há duas versões sobre o seu criador, que coincidem apenas na nacionalidade (alemã), género (homem) e credo (luterano). A mais consistente aponta para Gerhard Lang, que no final do século 19 terá produzido o primeiro calendário do advento, inspirado num que a mãe lhe fez em criança. A versão menos sustentada aponta para um livreiro de Hamburgo, em 1902. O que nenhuma destas duas criações tem em comum com os calendários atuais é o espírito, mesmo que os do século 21 tenham neles a sua base.

No calendário com 24 cafés e uma surpresa no último dia, a Nespresso une-se ao pasteleiro Pierre Hermé (€50, linha Vertuo, lojas Nespresso e nespresso.com)

A liturgia do advento incentiva a vivência dos valores essenciais cristãos e a espiritualidade. É um tempo de esperança e antecipação, celebrado com alegria sóbria. No primeiro dia do advento é suposto montar a árvore de Natal, o presépio e a coroa (com quatro velas no centro, cada uma acesa em cada domingo do advento). As duas primeiras semanas são de expectativa para a segunda vinda definitiva de Cristo, enquanto as duas últimas (de 17 a 24 de dezembro) são ocupadas com os preparativos para a sua chegada.

Na Davines não há uma surpresa por dia até ao Natal, mas 12 produtos para o cabelo personalizáveis (€115,25, cabeleireiros selecionados e davines.pt)

Estas referências não estão completamente perdidas nos calendários de beleza e de luxo, virados para a gratificação e satisfação pessoal. Alguns deles, por exemplo, representam a árvore de Natal (Rituals), a neve (Montblanc) ou o céu estrelado (Dior). Entre algumas marcas, a abordagem pode ser mais conceptual e cruzar a cor da marca com cores natalícias: o amarelo torrado da Acqua di Parma com encarnado e verde ou o vermelho magenta da Nespresso com dourado, optando também por caixas com formatos originais. Os chocolates são os mais fiéis à tradição retangular, com as janelas alinhadas ao alto, e ao destinatário infantil, com desenhos da loja do Pai Natal (Neuhaus) ou de renas e presentes (Venchi).

Além dos calendários convencionais, a Sephora propõe contar o pós-Natal, com dois produtos em cada uma das seis janelas (€29,99, lojas Sephora e sephora.com)

A Davines foge a estes cenários e à mecânica de uma surpresa por dia, na contagem decrescente até ao Natal. A marca sustentável de cuidados com o cabelo apresenta-se com um calendário com 12 caixas decoradas com desenhos inspirados nas culturas do mundo e personalizáveis com os produtos mais adequados ao destinatário. A Sephora vai mais longe e, além dos calendários do advento convencionais, propõe um calendário para depois do Natal com seis caixas, cada uma com dois produtos, que fazem a contagem a partir de 26 de dezembro até ao fim do ano. Adivinha-se o pós-advento como um novo nicho dos calendários... E não necessariamente para assinalar os dias até à celebração da sagrada família de Jesus, Maria e José, no domingo a seguir ao Natal.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CNunes@expresso.impresa.pt

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