Pelo valor do saber: a investigação fundamental merece espaço próprio
A investigação fundamental aumenta a diversidade epistemológica, cria um conjunto vasto e imprevisível de ideias e é dessa diversidade que sai a inovação profunda
Reitor da Universidade de Lisboa
A investigação fundamental aumenta a diversidade epistemológica, cria um conjunto vasto e imprevisível de ideias e é dessa diversidade que sai a inovação profunda
Numa altura em que se pede que a investigação científica seja orientada por linhas estratégicas claras, «missões», metas e retornos económicos imediatos, é urgente lembrar um princípio simples e poderoso: a investigação fundamental (aquela feita pelo prazer de saber, sem exigência prévia de aplicação) é o motor silencioso das maiores transformações humanas. Defender o “conhecimento pelo conhecimento” não é luxo intelectual: é garantia de futuro.
A União Europeia reconheceu esta importância ao criar e preservar instrumentos de apoio à investigação de fronteira orientada pelo investigador, sem prioridades temáticas impostas, como o European Research Council (ERC). O ERC foi pensado para financiar investigação «bottom-up», de excelência e orientada pela curiosidade dos cientistas, e tem mostrado que essa aposta produz descobertas fundamentais que, com o tempo, têm impacto social e económico.
Como demonstrar isto sem demagogia? Comecemos por alguns factos históricos que toda a gente conhece, mas cujo significado se costuma subestimar.
Alessandro Volta construiu, em 1800, a pilha voltaica, a primeira fonte contínua de corrente elétrica, a partir de experiências de laboratório sobre metais e eletricidade que não tinham qualquer «plano de negócio». A partir dessa curiosidade básica nasceram, décadas depois, aparelhos, redes e uma civilização elétrica.
Michael Faraday, meia geração mais tarde, investigou, por simples curiosidade, como é que um íman em movimento influenciava um fio enrolado, e descobriu a indução eletromagnética (1831). Faraday não procurava «criar luz» ou «fabricar motores»; procurava compreender. A eletricidade aplicada, motores, geradores e comunicações, só se tornou possível graças a esse conhecimento primeiro.
A ciência moderna está cheia deste padrão: a observação curiosa leva à procura da compreensão dos fenómenos, a que se seguem, por vezes, aplicações inesperadas. Vejamos dois exemplos do século XX:
• Em 1969, microbiologistas descreveram a bactéria termófila Thermus aquaticus, encontrada em fontes termais. Décadas depois, a enzima Taq DNA polimerase, isolada dessa bactéria, tornou a reação em cadeia da polimerase (PCR), uma tecnologia que revolucionou a biologia molecular, bem como diagnóstico clínico e forense. Ninguém, em 1969, estudava Thermus aquaticus com o objetivo de “inventar” o PCR.
• A teoria da relatividade de Einstein (inicialmente trabalho teórico sobre a natureza do espaço-tempo) tornou-se essencial para sistemas práticos de navegação: os satélites do GPS só funcionam com a precisão que temos porque as correções relativistas são aplicadas aos relógios a bordo. A aplicação prática veio muito depois da dedicação abstrata à física.
Também a matemática pura, muitas vezes apontada como o exemplo mais extremo de «saber pelo saber», produziu ferramentas fundamentais para a vida digital: a teoria dos números (tida como área inteiramente teórica) é a base de algoritmos de criptografia que protegem as transações online. Novamente, ninguém defendeu, no princípio, que esse estudo teórico se tornaria a infraestrutura crítica da economia eletrónica.
Se estes exemplos são retirados das ciências exatas e naturais, o argumento é ainda mais forte quando pensamos nas ciências sociais e nas humanidades. Em todas elas o princípio do “conhecimento pelo conhecimento” é primordial. Os maiores avanços científicos nestas disciplinas ignoraram, quase completamente, a possível aplicação prática dos resultados.
É certo que, no caso das ciências sociais, a separação entre investigação fundamental e aplicada é frequente. Ainda assim, mesmo quando as reflexões incidem sobre problemas concretos do quotidiano, não é evidente o seu possível retorno e utilidade económica. Muitas vezes os estudos influenciam as políticas públicas e causam inovação social. Mas a repercussão económica não é clara.
O caso das humanidades é ainda mais emblemático. A maior parte dos desenvolvimentos na filosofia, história ou linguística, para citar alguns exemplos, ocorreu sem qualquer pretensão de aplicabilidade. Ora sabemos hoje, por exemplo, que as ciências da linguagem estão totalmente imbrincadas na inteligência artificial. Linguistas e engenheiros trabalham hoje lado a lado.
Estes exemplos ilustram um ponto prático: a investigação fundamental aumenta a diversidade epistemológica, cria um conjunto vasto e imprevisível de ideias e é dessa diversidade que sai a inovação profunda. A experiência mostra que políticas públicas demasiado assentes em prioridades impostas à partida, ditas “linhas estratégicas”, reduzem as probabilidades de descobertas inesperadas e de ruturas radicais. O resultado é previsível: mais incrementalismo e menos revolução.
São vários os argumentos a favor da orientação estratégica da investigação. Para os mais frequentes, a seguir enunciados, apontamos algumas respostas:
• “Precisamos de resultados rápidos para problemas urgentes.” Sim, e a investigação aplicada dirigida é essencial para isso. Mas problemas urgentes beneficiam de um reservatório de conhecimento profundo e imprevisto, que só surge com investigação fundamental sustentada.
• “O público paga, logo exige retorno.” Retorno existe, mas nem sempre é imediato, económico ou mensurável em trimestres. As sociedades que conseguem explicar e valorizar investimento em saber básico, reconhecendo que o pagamento pelo retorno pode ser longo e incerto, tendem a colher uma vantagem histórica incomparável. Vejam-se os países do centro e norte da Europa e os EUA.
• “Podemos escolher prioridades e ainda financiar curiosidade.” Sim, em tese. Na prática, os instrumentos públicos são finitos e a pressão por resultados mensuráveis tende a canibalizar o financiamento não dirigido. É por isso que estruturas explícitas, como as que defendem a autonomia do financiamento de excelência, são essenciais: para garantir que o espaço da descoberta não desapareça.
Para o leitor que procura uma conclusão prática: a investigação fundamental deve ser protegida como bem público estratégico. Não porque cada projeto precise prometer aplicações, mas porque a própria capacidade de gerar aplicações radicais depende de manter comunidades inteiras livres para explorar, errar e inventar. Políticas sensatas combinam:
1. Financiamento robusto e de longo prazo para investigação de fronteira orientada pelo investigador (como o ERC).
2. Instrumentos de ligação (proof-of-concept, parques de ciência e tecnologia) que ajudem a transpor descobertas, quando apropriado.
3. Avaliação que valorize risco, originalidade e impacto a longo prazo, não só indicadores de curto prazo.
A eletricidade, a PCR, o GPS e a criptografia são apenas alguns exemplos de como o “saber pelo saber” transformou o mundo. Retirar esse espaço da política científica em troca de uma «orientação estratégica» é uma economia míope: sacrifica-se a sementeira de novos campos por um suposto controlo do presente.
Se o objetivo do Estado é proteger o interesse público a longo prazo, então deve defender a curiosidade científica, não domesticá-la.
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