Além da óbvia conotação bíblica, íntima e moral, a dicotomia erro vs. pecado também tem uma implicação política
A versão habitual de Jo 1, 29 é esta: eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Ouvimo-la todos os dias, está na banda sonora do mundo, até o mais eminente dos ateus conhece de cor esta litania que faz do cordeiro predador e do leão presa. Mas será esta a versão correta? Numa tradução nova, “Os Quatro Evangelhos” (Quetzal), Frederico Lourenço apresenta outra hipótese, que me parece mais adequada ao perfil cristão, ou seja, é uma versão menos farisaica. Ei-la: eis o cordeiro de Deus que tira o erro do mundo. Erro e não pecado. No Dicionário Houaiss, a palavra “erro” é sinónimo de engano, desacerto, descuido e — o meu favorito — escorregadela; estamos a falar de ações que se podem cometer num dado momento, mas que não são a própria essência da pessoa. Ao invés, a palavra “pecado” é mais pesada, é uma mancha de remoção mais complicada, porque pode significar crueldade, desumanidade, ruindade. Nem com creolina. Está mais nas entranhas da pessoa, que é vista como um pecador, um maldito, um proscrito, e não como alguém que pode cometer erros aqui e ali. A ideia de pecado aproxima o humano da esfera mitológica de Belzebu, a ideia de erro mantém o humano na esfera comezinha do humano. Sim, a palavra “erro” é mais adequada ao espírito do Evangelho, porque um erro não mancha para sempre uma pessoa; sem essa janela de esperança e empatia não há constrição, perdão, recomeço, não há cristianismo. É essa a mensagem de Jesus, que dois mil anos depois continua fresca, viçosa, revolucionária. Revolução, essa, que tem duas faces. Primeira, há sempre um recomeço mesmo para um ogre intratável. Boa parte dos seguidores de Jesus, de Madalena a Saulo, eram pessoas questionáveis; Jesus bebia copos e assava um peixinho com as personagens mais intragáveis. Segunda face: o erro não passa de pai para filho; os filhos e netos não podem pagar pelos erros dos pais e avós, essa corrente elétrica que atravessa gerações tem de ser quebrada, senão estamos sempre presos num mal original.
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