Não sei se a Europa definha. Cansa-se, tropeça, hesita – mas respira. O diagnóstico do seu ocaso soa a epitáfio, mas é precipitado. A história deste continente raramente se inclinou perante o fatalismo. Sobreviveu a guerras de fé, à peste, a impérios dissolvidos em pó, a dois suicídios mundiais no século XX. O que parecia irremediável foi, geração após geração, erguido de novo com paciência, memória e reinvenção.
Estamos hoje perante uma nova encruzilhada. Mas não estamos condenados à irrelevância. Temos liberdade para escolher. O lamento da decadência acerta em parte: sim, envelhecemos. Sim, perdemos peso cultural e económico no tabuleiro global. Mas ilude-se no essencial: confunde desgaste com destino, desorientação com desaparecimento. A Europa não é uma comunidade a render-se: é um espaço de pluralidade que sobrevive justamente porque se reinventa nas crises. Sempre foi assim e assim continuará.
A crise não é apenas ameaça: é condição da nossa sobrevivência. Do cataclismo de 1945 nasceu o modelo social europeu, que ergueu milhões da miséria e deu corpo à promessa de dignidade. Da queda do Muro emergiu a reconciliação de povos há demasiado tempo privados de liberdade. Da pandemia surgiu, contra todas as previsões, um plano comum de investimento que revitalizou economias e provou que ainda sabemos agir juntos. Hoje, diante da guerra da Ucrânia, do cerco de Gaza, da manipulação da pressão migratória e da sombra dos populismos, a Europa volta a vacilar. Mas vacilar não implica necessariamente cair.
É por isso que o retrato de um continente refém de subsídios e da própria velhice esquece o essencial: a memória que não se apaga, a experiência acumulada, a persistência de uma promessa democrática que resiste num mundo cada vez mais autoritário. Vista de fora, a Europa parece fatigada. Vista de dentro, continua a ser o único espaço que insiste em conciliar liberdade com solidariedade, pluralismo com unidade, diversidade com pertença. É esta teimosia, imperfeita, mas vital, que nos mantém vivos – que nos mantém quem realmente somos.
Chamar-nos-ão idealistas. Mas isto não é idealismo, é interesse próprio. Precisamos de coragem para agir à escala dos desafios: num investimento sem precedentes na transição energética e na revolução digital. Com uma influência geopolítica capaz de mediar conflitos – não apenas de os acompanhar. Numa defesa que não seja retórica, mas garantia real de autonomia. De recuperar a centralidade da solidariedade europeia, não através de uma amálgama de fundos, mas políticas concretas de coesão. Precisamos de preservar fronteiras sem abdicar do humanismo, de integrar sem medo da diferença, de construir sem esperar que Washington nos trace o rumo.
De nos defendermos sempre que Moscovo atinja os nossos interesses ou Pequim nos queira encostar à parede. De afirmarmos, em Copenhaga ou em Lisboa, uma política externa que garanta os nossos valores uniformemente, tanto em Kiev como em Gaza.
Impõe-se, acima de tudo, um salto de maturidade política. Uma defesa comum capaz de ligar exércitos nacionais sob comando europeu, não como mera abstração burocrática, mas como instrumento vivo de dissuasão. Um orçamento comum que não seja mera soma de egoísmos, mas parte de um quadro maior que inclua emissões conjuntas de dívida, financiamento de tecnologias de última geração, investimento em inteligência artificial e energia limpa. Um mercado verdadeiramente único, onde a inovação não se afogue em labirintos burocráticos, mas floresça com a audácia que outrora animou a ciência europeia.
Do mesmo modo, precisamos de uma política externa que não fique prisioneira de vetos nacionais. Da Hungria à Eslováquia, teremos de ser capazes de impor limites aos que pretendem destruir a União Europeia desde dentro. Como poderemos exigir à Ucrânia que promova o Estado de Direito para aderir, quando nada fazemos para preservar o mesmo nos Estados-Membros?
Urge uma diplomacia que responda com rapidez às crises, da Ucrânia a Gaza. Que afirme não apenas a solidariedade, mas a capacidade de ação e pressão. Precisamos de usar o peso da nossa economia com coragem – suspendendo o Acordo de Associação com Israel, tal como impusemos dezoito pacotes de sanções à Rússia – não como arma contra nós próprios, mas como mecanismo de dissuasão perante russos e chineses, perante o Governo israelita ou Donald Trump.
Por fim, impõe-se recuperar o fio da identidade europeia. Não uma identidade única e estreita, mas em camadas, da aldeia à cidade, da cidade à nação, da nação ao continente. Só assim deixaremos de ser um mosaico disperso de interesses para nos tornarmos num desenho coeso e resistente, capaz de competir num mundo cada vez mais competitivo e perigoso.
É com algumas destas ideias que se constrói um futuro melhor. Ainda temos hipóteses. Hipóteses de uma Europa menos ingénua e mais pragmática, que aceite os seus limites e os transcenda. Hipóteses de uma Europa capaz de surpreender-se a si mesma, como tantas vezes fez quando todos a davam por morta. Hipóteses de uma Europa que compreenda que não basta recordar memórias: é preciso dar-lhes corpo através de novas formas de coesão e coragem política.
Podem querer convencer-nos de que tudo isto é impossível. Que os Tratados não o permitem ou que a realpolitik não o aconselha. Que o ocaso da Europa é terminal e que estamos condenados a ser governados por autocratas. Que os nossos valores devem variar em função do lugar do mundo, graduando o nível de sofrimento aleatoriamente.
Mas não definha quem debate. Não definha quem ainda encontra força para se indignar. Definha apenas quem abdica. E a Europa, apesar de todas as suas crises, ainda não abdicou. Ainda não perdemos. Muitos europeus ainda não desistiram de tentar.