Manual de sobrevivência à liderança ausente
A nossa frustração com o poder não é um problema político. É o sintoma de uma nação que se sente em orfandade cívica
Médico Psiquiatra e Psiquiatra Forense
A nossa frustração com o poder não é um problema político. É o sintoma de uma nação que se sente em orfandade cívica
Sentimo-lo todos os dias. Uma exaustão cívica que já nem se dá ao trabalho de escolher partidos. A cadeira do poder muda de ocupante, mas a nossa frustração parece ter assinado um contrato de permanência. Os nomes mudam: Marcelo, Costa, Montenegro... mas o enredo é o mesmo.
Perante isto, a pergunta "quem tem a culpa?" tornou-se terapeuticamente inútil. A única questão que interessa é: que padrão é este e porque é que o normalizámos?
Este padrão não é um acidente. É o produto de um sistema – mediático e político – que recompensa a cautela e penaliza a coragem. No entanto, a forma como cada líder responde a estas pressões revela um défice de competência que se manifesta em três sintomas claros.
A primeira tarefa de um líder é dar-nos um sentido de "nós". Em Portugal, parece que nos especializámos no seu oposto: o administrador. Temos ministros que se comportam como chefes de departamento, fugindo do caos humano para o conforto dos talking points. O apelo da então Ministra da Saúde a um "esforço adicional" não foi um lapso; foi um reflexo condicionado. Perante o trauma coletivo, a resposta foi uma solução de gestão. Uma forma elegante de se demitir do peso emocional do problema real. Mas se fugir da emoção é um problema, a verdadeira falha revela-se na comunicação de crise.
É na comunicação de crise que este arquétipo realmente colapsa. E aqui, o nosso foco na "honestidade" ou "altivez" é uma distração. O que realmente importa é a competência relacional. A altivez da atual ministra da Administração Interna sinalizou desprezo. A descontração de um primeiro-ministro, abandono. Ambas as reações falharam no seu dever mais básico: em vez de conterem a ansiedade coletiva, agravaram-na.
A solução? Certamente não é a "ética do fingimento", na feliz expressão de Miguel Morgado. A manipulação, sejamos claros, goza de excelente saúde. Funciona... até que a omnipresença dos afetos e da proximidade calculada leva ao seu próprio desgaste, e o público se vacina contra a performance.
Mas há um antídoto claro para este teatro desgastado. A verdadeira competência chama-se regulação emocional estratégica. A manipulação serve o líder. A regulação serve o coletivo. Para ver a diferença, basta lembrar: nos “Fireside Chats”, Franklin D. Roosevelt converteu o medo em união; durante o Blitz, Winston Churchill lançou esperança em meio ao caos; e, mais recentemente, Jacinda Ardern manteve a coesão social na pandemia graças à empatia e à transparência. Isto demonstra que a regulação emocional estratégica transforma ansiedade em determinação coletiva. Se a manipulação é espetáculo, esta é terapia; se a primeira é autopromoção, a segunda é serviço público.
Finalmente, a accountability. Tornou-se uma palavra oca, uma batata quente que ninguém quer segurar.
Vimos um exemplo clínico disto mesmo recentemente, na justificação do primeiro-ministro: "sinto até injustiça dessa interpretação, mas reconheço que posso ter contribuído para ter acontecido".
A fórmula é um primor de diluição. Primeiro, o problema não é a minha ação, é a sua perceção. Segundo, lamento o acontecido, não o que fiz. O golpe de mestre é a auto-vitimização: o líder sente-se "injustiçado" pela forma como o seu erro foi visto.
Pedir desculpa pelo erro do outro é o cúmulo da não-responsabilização. É a confissão de que o capitão não comanda o navio; limita-se a dar-nos a previsão do tempo.
Este padrão não é um defeito de caráter. É o que o nosso sistema produz. Ao falharem na sua função de absorver a ansiedade e projetar um rumo, estes líderes deixam-nos em orfandade cívica.
O antídoto, portanto, não está em encontrar um salvador. Está em mudarmos nós, enquanto cidadãos, a nossa forma de avaliar. Em vez de debates ideológicos, é mais útil focarmo-nos em três pilares fundamentais da liderança competente: 1) responsabilidade real, não retórica; 2) comunicação empática, não apenas informativa; 3) intenção de servir o coletivo, não o próprio ego.
Uma nação que não sabe o que procurar num líder será governada por aquilo que não a cura.
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