Opinião

Incêndios Florestais – importa dizer a verdade aos portugueses

Incêndios Florestais – importa dizer a verdade aos portugueses

Ascenso Simões

Gestor e ex-Membro do XVII Governo Constitucional

Os governos que se sucederam promoveram alterações significativas na leitura da organização da floresta, capacitaram humana e tecnologicamente o sistema, mas erraram no básico – não há nenhuma transformação que não agregue à realidade do território, não se impõem modelos que não sejam entendidos nem cheguem às pessoas

Quero dizer, logo a abrir, que exerci funções governativas, entre os anos 2005 e 2009, nas áreas da proteção civil e das florestas e quando terminei as funções deixei de me pronunciar sobre as matérias que tutelei. Porém, faço-o hoje, passadas quase duas décadas, porque durante aqueles quatro anos foi feita a maior reforma, em décadas, no âmbito do combate aos incêndios florestais e iniciou-se a transformação institucional na gestão e proteção da floresta. Dessas reformas, que em algumas das suas componentes precisavam de transformações e acertos logo nos anos seguintes, já só sobra uma parte na prevenção operacional, da responsabilidade da GNR, e outra parte, maior, na resposta que é da responsabilidade da ANEPC.

O universo, que no final da primeira década do século tinha ficado menos consolidado, era o da prevenção estrutural e, logo em 2012, foi completamente arrasado pela ministra Assunção Cristas. Os governos que se sucederam promoveram alterações significativas na leitura da organização da floresta, capacitaram humana e tecnologicamente o sistema, mas erraram no básico – não há nenhuma transformação que não agregue à realidade do território, não se impõem modelos que não sejam entendidos nem cheguem às pessoas.

Em 2017, tivemos as grandes ocorrências de Pedrogão e do Centro. Foram situações anómalas que demonstraram que Portugal vai estar sujeito a novas realidades no âmbito dos incêndios. A partir daí, deu-se a ideia de que haveria um atalho para reduzir significativamente os eventos e que Portugal poderia, ao arrepio do que a ciência vem dizendo, controlar, e quase fazer desaparecer, o número de ignições e reduzir imensamente a área ardida.

Foi um erro crasso, uma imprudência política. O caminho seguido foi de uma centralização sem precedentes das decisões sobre a floresta e uma desresponsabilização dos agentes locais sobre o caminho que importava fazer. Até as grandes campanhas públicas, condição essencial para a prevenção, passaram a ser feitas com a cabeça da capital e não com a leitura do mundo real.

Chegamos a um ponto em que os governos, bem como as autarquias, têm de mudar completamente a narrativa e assumir que Portugal, mesmo que tenha menos ignições, pode observar anos com mais incêndios de difícil resolução e que muitos destes vão implicar em áreas extensas do nosso território, provocar enormes perdas de vidas e de bens.

Indico quinze considerações para que possamos descer à terra:

1. Portugal está a verificar uma desertificação acelerada do seu espaço continental. Entre a década de 1960 e a de 2010, mais 31% do território passou a integrar área semiárida e nele viviam mais de 4 milhões de pessoas. Este processo, comprovado há décadas, tem muitas razões. Não é só o sul do país, também uma parte das Beiras e de Trás os Montes assiste a este fenómeno que tem difícil resolução. As políticas públicas, assumidas transversalmente pelos departamentos do Estado, não incorporam esta preocupação;

2. As alterações climáticas ampliam a tradicional consideração de desertificação, e ao promoverem modificações significativas no clima estão a criar situações especiais nas tradicionais estações do ano. Tanto podemos ter invernos secos que levem a grandes incêndios, como podemos ter ocorrências extremas que dizimam vastas áreas em poucas horas. Por isso, a ideia de que os incêndios são coisa que podemos resolver definitivamente, é um pecado capital;

3. Uma parte muito significativa do território está despovoada e vai ficar ainda mais despovoada. A realidade do nosso tempo, e as políticas públicas inadequadas, levaram à saída, para o estrangeiro e para as grandes áreas metropolitanas, dos mais novos e mais capazes e nem sequer se apostou nas cidades médias como tampão. Há concelhos onde já não há nervo para se garantirem as atividades mínimas necessárias à vida de uma comunidade, onde a população deixou de tratar do que é seu, onde o abastecimento básico já só garantido pela imigração;

4. É exatamente o despovoamento e a falta de nervo que levam a que a atividade agrícola e florestal (também a pecuária) se tenham quase eclipsado em dois terços do território. No minifúndio ainda há pequena atividade agrícola que se desenvolve muito nas frutas e legumes e que vai vivendo das ajudas diretas, mas a floresta, que antes era complementar da atividade agrícola e pecuária, ficou praticamente ao abandono;

5. A partir de 2016, os governos promoveram o cadastro rural. Foi a maior das conquistas feitas. Mas o que vamos fazer com ele? A floresta de pequena propriedade não tem valor, quase ninguém vende ou compra terras, o mercado de arrendamento é insignificante. Ora, sem termos uma política fiscal aguerrida, que possa dar valor aos “prédios”, as populações vão deixando estar, não gerem, não limpam e quando arde encolhem os ombros até ao incêndio seguinte que pode já não ser em povoamentos, mas em incultos;

6. O território florestal está dividido em três grandes fileiras (desculpem-me os silvicultores por estas simplificações) – eucalipto, pinho e montados. Se no eucalipto há mercado, mesmo que esteja a reduzir e tenhamos o problema dos povoamentos velhos que são um martírio, se nos montados a gestão vai sendo promovida pelos industriais da cortiça e ocupada pela produção extensiva de gado, embora tenhamos problemas com o envelhecimento dos povoamentos e com pragas e doenças, é no espaço que antigamente estava invadido pelo pinho que temos tido mais problemas. Tudo isto coincide com a propriedade – montado e uma parte do eucalipto (com pinheiro manso) na grande propriedade; pinho, outra parte do eucalipto e um sem fim de espécies na pequena e micro propriedade. Esta realidade não vai mudar significativamente;

7. A somar a esta presença florestal, Portugal tem uma excentricidade – os baldios. Estes, previstos constitucionalmente, são territórios comunitários que são geridos por compartes (os habitantes de um lugar) através de um Conselho Diretivo (eleito). São muitas centenas de milhar de hectares que têm, genericamente, má gestão e péssima administração, que servem em muitas situações como contrapoder às câmaras e às juntas, que têm contas (?) que não são controladas por ninguém, que, ao longo dos anos, ajudaram a enriquecer muito boa gente. Ninguém quer encontrar uma nova forma de governar esta realidade. Antes ainda tinham cogestão da autoridade florestal e até isso está a desaparecer;

8. Fala-se muito da economia da floresta e como ela é relevante para resolver os problemas que levam aos incêndios. Claro que há muitos estudos que o referem, são o tal Portugal ideal. Mas se olharmos a área ardida de 2024 – 137 mil hectares – e lhe retirarmos os 38 mil hectares queimados de povoamentos, podemos dizer que há uma imensidão de território de natureza hibrida, matos, incultos, chamem-lhe o que quiserem, cujo valor e interesse económicos não é possível contabilizar nem organizar, mas é reduzidíssimo. Mas os incêndios existem e precisam de ser combatidos, ocupam meios, são caros;

9. Vivemos uma falsidade que importa contestar. Muita gente diz que os povoamentos que são detidos pelas grandes empresas são melhor geridos do que a propriedade dispersa. É verdade que há áreas grandes e pequenas muito bem geridas e que têm uma resiliência maior, mas as enormes manchas florestais de monocultura, que são as que mais interessam à industria, são igualmente sujeitas a grandes e graves incêndios como se tem visto no Alentejo e no Algarve;

10. Em Portugal são reduzidas as empresas que compram madeira em grande quantidade e que implicam o preço. No eucalipto só duas grandes entidades intervêm, na cortiça há meia dúzia, no pinho há umas dezenas, mas muitas aplicações de outrora deixaram de se verificar. E há novas circunstâncias que se prendem com os mercados globais – há muita madeira certificada e a menor preço em muitos outros países. Por outro lado, a informalidade entre produtores e comerciantes (intermediários), e destes com as fábricas, leva a que os preços sejam quase sempre o que quiserem dar e não o justo. A regulação de mercados, dada a nossa realidade, é muito difícil, mas deve ser tentada;

11. Há hoje um bode expiatório que é usado por políticos, comunicação social, comentadores e até por técnicos da área – os incendiários. Foi em 2007 que o Código Penal passou a tratar especificamente, com penas severas, quem atenta contra o património florestal. Mas há que dizer claramente – não somos um país de malucos, não somos um país de incendiários. Se olharmos bem para os indicadores da GNR, o que temos é negligência, falta de cultura, práticas antigas, circulação atípica por decorrência da chegada às aldeias de pessoas que estão fora, trânsito em vias florestais e rurais implicado pelas festas e romarias. Conviria que tivéssemos mais consideração por nós, pelas nossas gentes e não nos transformássemos, aos olhos da comunidade internacional, em inimputáveis. Conviria que tivéssemos sempre presente que pode haver uma ignição provocada por um incendiário, mas só haverá incêndio grande se houver alguma coisa para arder;

12. Tudo isto é acompanhado por uma total desconsideração institucional e social da agricultura, da pecuária e da floresta. Nos últimos governos, o ministério que nos acompanha todos os dias durante a nossa vida, porque todos os dias comemos e é a agricultura que fornece os alimentos, está sempre num dos últimos lugares da hierarquia. Isso diz tudo. Mas é também verdade que na vida de hoje “aprendemos” que as galinhas nascem nos supermercados, que ser lavrador não é futuro, que trabalhar a terra não dá estatuto. Isso vê-se na frequência dos cursos agrícolas, vê-se no deserto que atacou a silvicultura que deixa cursos superiores desfrequentados e vê-se, até, na representação parlamentar;

13. E temos uma organização pública arcaica e ausente de capacidade de implicação no território. A anexação institucional da floresta de produção pela conservação da natureza criou um dano imenso na atividade florestal. Ter hoje uma floresta cheia de limitações (como se vê nas áreas dos parques naturais que continuam a arder e nas implicações dos planos de “paisagem”) é o primeiro passo para o abandono do que resta. Quem não percebe que separar institucionalmente as florestas da conservação da natureza é primeiro passo para recuperar um pouco da atenção ao espaço florestal, não entende nada do que está a fazer.

14. Portugal gastou milhares de milhão de euros na floresta desde a nossa adesão à União Europeia. Ninguém sabe onde foram aplicados, que áreas foram subsidiadas duas ou três vezes, qual o sucesso desses apoios ao longo das décadas. Temos leis que datam de 1903 e, ainda, uma administração florestal, com excelentes funcionários mas completamente desmotivados, situada em meados do passado século, colonialista, controladora e pouco pedagógica que nem o património público consegue gerir, como temos associações de produtores completamente dependentes do Estado. Numa semana o incêndio de Ponte da Barca fez arder 10% do Parque Nacional da Peneda-Gerês, área sujeita aos ditames da conservação da natureza e uma semana depois os incêndios no Parque Natural da Serra do Alvão criaram um dano enorme, ainda não contabilizado, área também sujeita às visões contemplativas da floresta. Não me venham com aquela velha ideia dos “serviços de sistema”, nem com as eternas centrais de biomassa, coisas que se pensam, escrevem, mas ou não passam do papel ou são insucessos enormes;

15. Por fim, temos hoje uma reduzida intervenção dos municípios nos territórios agrícolas e florestais. Se há área em que, fruto da falta de gestão, do tipo de povoamento, da implicação das comunidades, da sazonalidade da ocupação, dos impactos complexos da desertificação, do despovoamento e do abandono mais se fazem sentir, é mesmo no território que mais arde a cada ano. Não há plano de defesa da floresta que vingue se os presidentes de câmara não assumirem para si o desafio de tratar do território e das gentes.

É perante esta realidade complexa que os políticos devem ser francos com os portugueses – os incêndios florestais, que vão ser muitos, por vezes enormes e com graves perdas, devem ser entendidos pelos nossos concidadãos como uma decorrência da realidade que somos. Esta mensagem não implica braços caídos, só quer ajudar a determinar que o debate público, que importa fazer, não venha a ser inquinado logo no seu início.

Pode ouvir o Podcast em: https://tinyurl.com/4838sw4s

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