Opinião

Clareza moral em tempo de trincheiras

A clareza moral exige que se condene tanto o 7 de Outubro como o massacre em Gaza — sem mas, nem meio mas. Falamos de terrorismo e de genocídio. Nem mesmo Moisés, profeta das três religiões, saberia onde se refugiar nesta guerra de trincheiras. Mas há quem se julgue mandatado para impor o silêncio ou conceder a palavra.

Sobre a mais profunda crueldade de quem escolhe matar por vingança, ajudando a perpetuar o ódio, instalou-se em Portugal um debate sobre quem pode, deve ou tem legitimidade para condenar a matança — e em que termos. São os ares do tempo que vivemos: há quem se julgue mandatado para impor o silêncio ou conceder a palavra. A soberba é tal que já lhes parece natural decidir, numa crónica de jornal, os temas sobre os quais cada colectivo pode ou não pronunciar-se. O Teatro Nacional D. Maria II, por exemplo, estaria autorizado a opinar exclusivamente sobre teatro. Para evitar ferir susceptibilidades, claro está.

Quando António Guterres afirmou nas Nações Unidas que "os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo", recordando que "os palestinianos estavam há 56 anos sujeitos a uma sufocante ocupação", de pouco lhe valeu ter condenado com firmeza o terrorismo de 7 de Outubro. Percebe-se a crítica ao secretário-geral da ONU: não há lugar para justificações quando se trata de condenar a barbárie. No entanto, o clero do comentariado — aqueles que acreditam ter lido directamente da pedra onde o profeta reescreveu os mandamentos da opinião — faz hoje precisamente o que condenou (e bem) em Guterres no ano passado, encontrando no 7 de Outubro a justificação para a barbárie em curso na Faixa de Gaza.

Na mesma lógica, quem não tivesse condenado publicamente o ataque do Hamas não poderia agora condenar o massacre a que os palestinianos de Gaza estão a ser sujeitos; e ninguém poderia ter condenado o terror do Hamas sem antes ter condenado os colonatos, nem os colonatos sem antes condenar a Intifada e os bombistas suicidas... Mas a clareza moral exige que se condene tanto o 7 de Outubro como o massacre em Gaza — sem mas, nem meio mas. Falamos de terrorismo e de genocídio. Nem mesmo Moisés, profeta das três religiões, saberia onde se refugiar nesta guerra de trincheiras. No início do ano, o embaixador de Israel em Lisboa garantia que não havia fome em Gaza, acrescentando que “as pessoas até são gordas”. A fome, no entanto, foi matando pelo caminho — e até Trump diz que é impossível não ver. Mesmo assim, a diplomacia israelita não vê, e culpa o Hamas pelo que já entra pelos olhos dentro de todos os outros.

Num momento em que é preciso dizer que o que é errado ou inaceitável é errado ou inaceitável vindo de onde vier, há uns iluminados a escrever nos jornais relativizando um genocídio. Criticam a medo a fome que o governo israelita usa como arma de guerra e sobem a nota para criticar quem se atreva a fazê-lo sem papas na língua. Triste sina de quem se deixa confundir: o que se passa em Gaza é a vulgarização da morte. Não dá para fazer o joguinho das trincheiras, de onde se lançam umas boutades para disfarçar a ausência de empatia com os que sofrem.

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