Opinião

TAP — o inevitável reencontro com o passado

TAP — o inevitável reencontro com o passado

Nuno Esteves

Analista financeiro

O “complexo” dossier de privatização da TAP: os encargos do passado recente e os desafios que agora se colocam

Uma emissão de obrigações, que prometia ser apenas mais uma nota de rodapé no complexo dossier de privatização da TAP, acabou por se transformar num autêntico thriller financeiro, com ramificações que atravessam a Europa e a América do Sul.

No centro da história está um acionista brasileiro, David Neeleman — detentor, entre outras empresas, da transportadora aérea Azul. O enredo inclui 203 milhões de euros recebidos da Airbus e atualmente sob investigação judicial, uma dívida em obrigações de 178 milhões, uma holding estatal vazia, garantias contestadas, renúncias em massa na administração e uma batalha judicial iminente entre a TAP — hoje totalmente detida pelo Estado português — e a transportadora Azul.

E, como desfecho — favorável ou gravoso, consoante a perspetiva —, a fatura poderá recair precisamente sobre o futuro comprador da TAP, numa fase em que as negociações para uma nova privatização avançam a ritmo acelerado. A TAP SGPS emitiu dívida no valor de 90 milhões de euros, subscrita pela Azul e remunerada a uma taxa de juro composta de 7,5%, naquela que constituiu a operação mais onerosa da história do grupo, tendo como garantia o programa de fidelização Miles&Go.

Realizada em plena reestruturação pós-privatização, no 1.º trimestre de 2016, a operação visava reforçar a tesouraria da companhia aérea nacional e, também, sinalizar o compromisso do novo acionista. Até ao surgimento da pandemia, tudo parecia decorrer serenamente — como um voo tranquilo a bordo dos Airbus A330neo da TAP rumo às vibrantes capitais brasileiras. A turbulência surgiu com o deflagrar da pandemia de Covid-19.

David Neeleman, aos comandos da TAP, com know-how do negócio, mas sem capital para sustentar a paragem forçada dos aviões em terra, recebeu 55 milhões de euros do Estado português pela sua participação de 22,5% e saiu discretamente pela porta dos fundos, encerrando a sua aventura empresarial na transportadora nacional com um prejuízo acumulado de 247 milhões de euros.

No entanto, a história de David Neeleman e da Azul em solo português estava longe de conhecer o seu último capítulo.

Com prejuízos líquidos de 1,3 mil milhões de euros no final de 2024, a Azul — em reestruturação financeira desde maio — tentou, em julho, obter o reembolso antecipado dos títulos da tranche de capital, no valor de 90 milhões de euros. Solicitou ainda o reconhecimento das garantias associadas, perante o esvaziamento acelerado da holding TAP SGPS.

A resposta foi negativa em ambas as frentes: por um lado, a contraproposta de 50 milhões de euros representava um corte de 44% no capital investido; por outro, a TAP alegou que as garantias associadas à emissão de obrigações seriam nulas.

Ao invocar que o financiamento obrigacionista configurava, na realidade, um contrato de suprimento realizado, à época, pelo acionista David Neeleman — ainda que através da Azul —, destinado a reforçar a liquidez da empresa, a TAP atribuiu ao empréstimo um carácter subordinado, sendo este tipo de contrato fortemente limitativo da possibilidade de execução das garantias.

Numa sucessão de eventos em catadupa — começando pela mudança de nome da antiga holding da TAP para Siavilo, passando pela renúncia em bloco dos órgãos sociais e de fiscalização, bem como pela execução judicial pendente por parte da Azul — e culminando, já sob a nova identidade de Siavilo, com o pedido de insolvência, o Governo português optou por deixar a decisão nas mãos dos tribunais.

Do ponto de vista económico, o racional subjacente é claramente identificável: além dos cerca de 1 073 milhões de euros que a holding devia à TAP em dezembro de 2024 — dos quais 906 milhões foram canalizados para financiar a operação da TAP Manutenção & Engenharia Brasil — o acionista Estado injetou 3 344 milhões de euros na transportadora nacional desde o início da pandemia. Somando ambos os montantes — 1 073 milhões e 3 344 milhões de euros —, o esforço financeiro foi verdadeiramente ciclópico, até ao momento sem qualquer retorno.

Do outro lado, o acionista David Neeleman e a transportadora Azul investiram 303 milhões de euros na aquisição da TAP. Deste montante, 203 milhões de euros (cerca de 67%) foram assegurados por meio de um contrato gerado pela própria TAP — ou seja, sem cash out direto. Receberam, até à data efetiva da sua saída, 56 milhões de euros. No final de todo o processo, pretendem receber mais 178 milhões de euros em obrigações — um retorno acumulado de 98% exclusivamente neste último investimento.

Face à evidente assimetria no esforço financeiro de cada parte, e perspetivando-se a execução judicial iminente — que agravaria o desequilíbrio do Estado —, a insolvência e o recurso aos tribunais foram os caminhos escolhidos.

Ao reclassificar juridicamente esta dívida, o Estado pretende que seja uma entidade externa — neste caso, um tribunal — a decidir a exigibilidade do pagamento das obrigações, libertando-se das condições benévolas e das fragilidades da engenharia financeira estruturada no decurso do anterior processo de privatização.

Ironia do destino — ou apenas o inevitável reencontro com o passado —, o Estado português avança, uma vez mais, para esta nova privatização, admitindo um desconto no preço de venda para acomodar a contingência do eventual pagamento destas obrigações por parte do futuro acionista, desta vez, com todos os sinais a apontar para um comprador europeu.

Tendo, no mercado brasileiro, o seu principal ativo estratégico, a TAP detém 31% da participação no tráfego aéreo entre a Europa e o Brasil e 27% no sentido inverso, ligando Portugal a 13 cidades brasileiras através de 15 rotas diretas. Além disso, conta com 60% dos passageiros em trânsito para outros destinos, reforçando o seu modelo de hub & spoke e destacando-se no papel de porta de entrada para o mercado europeu.

Este posicionamento consolida o valor estratégico da companhia no eixo transatlântico e ajuda a explicar o elevado interesse de potenciais compradores — mesmo num cenário económico desafiador e com passivos contingentes que podem ensombrar o sucesso da operação de privatização.

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