Opinião

O Átomo no Médio Oriente

O Átomo no Médio Oriente

Corina Lozovan

Investigadora e doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

A questão nuclear do Irão reflete a natureza ambígua do próprio átomo: uma partícula infinitesimal que contém em si o potencial para fortalecer ou destruir. No epicentro da geopolítica regional, esta realidade cristalizou-se como metáfora e instrumento de um conflito entre a soberania, a segurança e a ordem internacional

À luz dos eventos recentes no Médio Oriente, o dilema do enriquecimento de urânio permanece por resolver, numa conjuntura frágil de cessar-fogo, marcada por uma assimetria nuclear. Deste modo, o programa iraniano, para além das disputas em torno das centrífugas, dos níveis de enriquecimento e dos protocolos de inspeção, reflete um impasse mais profundo entre diferentes modelos de regimes de segurança, ambições de autonomia e as arquiteturas normativas da ordem internacional.

Podemos interpretar o átomo, tendo em conta o comportamento do Irão nas relações internacionais, como um símbolo e um escudo. Desde a Revolução de 1979, o regime iraniano tem articulado a sua política externa para resistir à hegemonia ocidental e proteger a sua soberania revolucionária. Neste enquadramento, a tecnologia nuclear, em especial a capacidade de enriquecimento, é vista como um instrumento para projetar autonomia estratégica e preservar margem de manobra perante um sistema internacional que é percecionado como hostil. Para além disso, a experiência da Líbia ou da Ucrânia demonstra que o desarmamento voluntário das armas nucleares pode levar a um enfraquecimento estratégico, o que reforça a posição iraniana em relação ao seu programa nuclear.

Por outro lado, o Ocidente interpreta o mesmo átomo como um fator de desestabilização e um catalisador capaz de desencadear reações em cadeia num ecossistema regional já saturado de rivalidades latentes. Neste impasse diplomático, assistimos a uma coreografia repetitiva de sanções, negociações, e ameaças, que não resolve o problema estrutural: a ausência de uma arquitetura de segurança inclusiva no Médio Oriente. Portanto, o dilema do enriquecimento não é, per se, apenas técnico. O bloqueio atual resulta de uma visão sobre como garantir a segurança que, em vez de resolver o problema, acaba por cristalizar um conflito. Pretende-se dissuadir o Irão através da força militar e do controlo, impondo-lhe limites. Porém, este objetivo gera, em si mesmo, instabilidade, uma vez que alimenta a resistência do regime iraniano e, com isso, perpetua a insegurança na região.

A história mostra-nos que as relações internacionais oscilam entre a contenção e a explosão, revelando que, sem diplomacia e equilíbrio, aquilo que hoje parece estável pode, amanhã, transformar-se numa ameaça. Por conseguinte, a resolução da questão nuclear do Irão não poderá ser alcançada sem garantias mútuas de segurança que reconfigurem as perceções de ameaça e permitam integrar o país na ordem regional. Em qualquer cenário, acordos de natureza técnica revelar-se-ão sempre frágeis e vulneráveis a pressões externas e a dinâmicas internas.

Por isso, a sobrevivência de um compromisso sustentável exige mais do que protocolos. Requer, acima de tudo, uma reimaginação das relações de poder e uma negociação que aceite o átomo como inevitável, mas que, paradoxalmente, o mantenha contido numa estrutura que lhe negue o seu potencial destrutivo. Os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, possuem um programa de energia nuclear estritamente civil, sem fins militares ou de armamento. Em breve, a Arábia Saudita ambiciona seguir o mesmo caminho, mutatis mutandis. Isto demonstra que é possível existir energia nuclear na região sem riscos de proliferação. Contudo, a lógica de sobrevivência e a dimensão ideológica do caso iraniano impedem, para já, que este modelo nuclear civil e transparente se concretize. Sem uma mudança interna no país, dificilmente se encontrará uma solução duradoura.

Neste sentido, numa perspetiva de long durée, uma via para garantir a estabilidade no Médio Oriente poderá passar por uma cooperação de não-proliferação promovida pelos estados do Golfo Árabe, na qual a lógica da transparência seja consagrada num sistema regional de segurança e inspeção nuclear, complementar ao da Agência Internacional de Energia Atómica. Existem vários modelos que podem ser adotados para integrar o Irão numa arquitetura política e de segurança, mas tal integração exige, sine qua non, a normalização das relações. Este processo torna-se ainda mais complexo, dado o escrutínio externo que incide sobre o comportamento geopolítico do Irão.

Sendo assim, a ontologia da questão nuclear inscreve-se numa reconfiguração regional e internacional de rivalidades e interesses, onde é soberano aquele que decide em que armadilha quer cair.

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