Opinião

Apagão de abril: um sinal de alarme para o sistema elétrico nacional

Apagão de abril: um sinal de alarme para o sistema elétrico nacional

João Bernardo

Presidente do Conselho de Administração do Centro da Biomassa para a Energia e ex-Diretor Geral de Energia e Geologia

A resiliência não é um luxo. É um requisito básico de segurança nacional. E como qualquer seguro, só se revela valioso no dia em que tudo falha

No dia 28 de abril de 2025, a Península Ibérica mergulhou na escuridão. Portugal continental, Espanha, Andorra e parte do sudoeste de França ficaram sem eletricidade durante cerca de dez horas, naquele que foi classificado pela Comissão Europeia como o maior apagão elétrico dos últimos 20 anos na Europa. O episódio testou a nossa paciência, os nossos geradores e, sobretudo, a resiliência do nosso sistema elétrico. Será que aprendemos alguma coisa?

A primeira lição é simples, mas contundente: a eletricidade é invisível, mas quando falta, vê-se tudo. Elevadores parados, telemóveis sem rede, aeroportos encerrados, comboios imobilizados, lojas às escuras. Ficámos presos em casa, nas ruas e nas dúvidas. O que falhou? E mais importante: como evitamos que volte a acontecer?

Para começar, importa desfazer mitos. O problema não foram as energias renováveis. Muito menos a sua intermitência. A energia solar e a eólica são aliadas incontornáveis na luta contra as alterações climáticas e têm contribuído, com sucesso, para a redução das nossas importações energéticas e para a descida do preço médio da eletricidade. A questão está, isso sim, na forma como gerimos a sua integração num sistema que ainda está a aprender a viver sem centrais térmicas pesadas e com motores síncronos.

Nos bons velhos tempos do carvão e do fuelóleo (se é que esses tempos foram mesmo bons), tínhamos abundância de inércia elétrica – aquela “massa invisível” que resiste às variações de frequência da rede e dá tempo à rede para respirar quando algo corre mal. Hoje, a maioria das nossas centrais solares funciona com inversores que se desligam à mínima perturbação. São seguidores da rede, não líderes. Quando a rede falha, falham com ela.

O encerramento das centrais a carvão, nomeadamente Sines e Pego, foi um passo necessário na nossa caminhada para a neutralidade carbónica. Mas ao fazê-lo quase em simultâneo, sem reforço suficiente de alternativas que garantissem estabilidade (como centrais a gás, baterias ou compensadores síncronos), retirámos ao sistema elétrico uma das suas bengalas mais fiáveis, sem garantir que já sabia andar sozinho.

O que aconteceu a 28 de abril foi o colapso do equilíbrio fino entre produção e consumo. Uma queda abrupta de importações — cerca de 3.000 MW — despoletou uma reação em cadeia. Os mecanismos automáticos de proteção atuaram como deviam, mas foram ultrapassados pela escala e pela velocidade do desequilíbrio. Centrais nucleares em Espanha desligaram-se, parques eólicos e solares seguiram-lhes o exemplo. O sistema ibérico, com pouca ligação ao resto da Europa, ficou sem apoio externo. O chamado “efeito ilha” tornou-se literal.

A Península Ibérica é, infelizmente, uma “quase-ilha elétrica”. Estamos bem interligados com Espanha, mas mal conectados com França. Quando algo corre mal, a Europa protege-se desligando-se de nós — e nós ficamos a remar sozinhos no escuro. A capacidade de interligação com o resto da Europa continua abaixo dos 5%, longe da meta europeia de 15%. O reforço das interligações transpirenaicas, prometido há décadas, ainda esbarra em burocracias e resistências políticas do lado francês.

É aqui que começa a segunda lição: a resiliência não é um luxo. É um requisito básico de segurança nacional. E como qualquer seguro, só se revela valioso no dia em que tudo falha.

Se queremos um sistema elétrico mais resiliente, precisamos de agir em várias frentes — e depressa. A boa notícia é que não partimos do zero. Temos recursos, temos experiência e temos vontade. Agora é uma questão de decisão e investimento.

Primeiro, precisamos de mais interligações internacionais. Sem elas, somos uma ilha com energia renovável abundante que não pode ser partilhada nem socorrida. Projetos como a linha submarina do Golfo da Biscaia têm de sair do papel e ganhar prioridade política e financeira a nível europeu.

Depois, há que investir em armazenamento. As baterias não são ficção científica. São já uma realidade, e Portugal comprometeu-se a instalar pelo menos 500 MW até 2025. Mas precisamos de muito mais. Centrais hidroelétricas reversíveis, baterias de larga escala, hidrogénio verde — tudo isto são peças do mesmo puzzle: guardar o sol e o vento para quando eles não aparecem.

Terceiro: modernizar a rede. Torná-la inteligente, rápida e previsível. Com sensores, automação e inteligência artificial, é possível detetar perturbações em tempo real e isolá-las antes que se transformem em apagões nacionais. Algumas regiões, como os países nórdicos, já publicam o valor instantâneo da inércia do sistema. Portugal devia seguir-lhes o exemplo.

Quarto: descentralizar para resistir. As comunidades de energia, os prosumidores, as micro-redes com capacidade de operar em modo “ilha” são pequenas fortalezas elétricas. Quando bem equipadas com baterias e inversores “grid-forming”, podem manter bairros, hospitais ou escolas a funcionar mesmo em caso de falha da rede principal.

Quinto: planeamento, sim. Mas também execução. Os Planos de Desenvolvimento e Investimento da Rede de Transporte (PDIRT) e de Distribuição (PDIRD), elaborados a cada dois anos pela REN e pela E-REDES, apontam há muito para estas soluções. Mas como os investimentos são pagos por todos os consumidores através das tarifas de acesso, muitas das medidas acabam adiadas por questões orçamentais ou regulatórias. É preciso coragem política para assumir que a segurança custa — e que o custo de nada fazer é muito maior.

Finalmente, há que manter o rumo da descarbonização com prudência técnica. Não podemos parar a transição energética por medo de apagões. Mas também não podemos avançar às cegas. O caminho é claro: mais renováveis, sim — mas acompanhadas de mais flexibilidade, mais armazenamento e mais inteligência na rede.


O apagão de abril não foi um castigo. Foi um aviso. Se o soubermos ouvir, poderá ter sido o momento em que percebemos, finalmente, que um sistema elétrico moderno não é apenas verde — tem de ser resiliente, robusto e preparado para o inesperado. E isso começa agora.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate