Opinião

Anatomia de um genocídio?

Anatomia de um genocídio?

Francisco Pereira Coutinho e Matilde Pina Silva

Professor na NOVA School of Law e Mestre em Direito da NOVA School of Law

O genocídio é o crime dos crimes. A insistência em qualificar um ato como genocídio sem a devida fundamentação trivializa o conceito, retirando-lhe força normativa e, consequentemente, prejudica a proteção das vítimas

O inferno regressou a Gaza depois de dois meses de trégua. Bombardeamentos aéreos incessantes, bloqueio da entrada de ajuda humanitária, incluindo de alimentos e medicamentos, corte de eletricidade e, consequentemente, de água potável. Repete-se, em traços gerais, o cerco medieval levado a cabo por Israel no último trimestre de 2023.

Há um ano, Francesca Albanese, a relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, qualificou a intervenção israelita em Gaza como um genocídio, em resultado das vítimas e dos danos catastróficos que provocou e, particularmente, da ameaça que constitui para a sobrevivência, a longo prazo, do povo palestino.

O crime de genocídio pressupõe a existência de um propósito de destruição, total ou parcial, de grupo nacional, como são, inequivocamente, os palestinos. No entanto, essa intenção específica (dolus specialis) não pode ser simplesmente inferida, genericamente, de discurso de ódio ou de incitamento à violência. Tem de ser efetivamente demonstrada, sem a mínima margem para dúvidas. A avaliação da intenção genocida requer, portanto, a análise minuciosa de um conjunto de elementos de prova, nomeadamente a existência de um plano específico para cometer genocídio, de um padrão de conduta discriminatória e destrutiva recorrente, e de atos violadores das fundações do grupo que atestem esse padrão de conduta. Tudo isto a fim de excluir outras interpretações plausíveis relativamente à intenção, não podendo restar espaço para quaisquer outras possíveis inferências.

É uma prova diabólica. Será razoável inferir que a libertação pela força dos reféns e a eliminação do grupo terrorista que os tomou não passam, afinal, de subterfúgios para o objetivo final de destruição do povo palestino? Se o propósito de Israel é destruir o povo palestino, por que razão acordou repetidamente tréguas que tiveram como propósito prover as necessidades humanitárias da população de Gaza?

O Tribunal Penal Internacional – um intérprete qualificado do direito internacional penal –teve a oportunidade de se pronunciar sobre este assunto. O seu procurador, Karim Khan, imputou a Benjamin Netanyahu e a Yoav Gallant, respetivamente Primeiro-Ministro e (à altura dos factos) Ministro da Defesa de Israel, o uso da fome como arma de guerra, qualificando a prática como crime de guerra e crime contra a humanidade, designadamente crime de extermínio, o qual apresenta os mesmos requisitos e critérios do que o genocídio, com a exceção de não exigir dolus specialis. Os juízes de instrução do tribunal da Haia, em novembro de 2024, emitiram mandados de captura, excluindo, todavia, a imputação de extermínio. O crime de genocídio não foi sequer considerado.

O título sensacionalista do relatório de Francesca Albanese, “Anatomia de um Genocídio”, não tem correspondência com a realidade. A omissão de uma análise rigorosa que descarte hipóteses alternativas antes de concluir pela prática do crime de genocídio indicia uma instrumentalização ativista do direito internacional que compromete a credibilidade do relatório. Nem todas as violações do direito internacional humanitário configuram, por si só, crimes graves; muito menos configuram o crime mais grave.

A insistência em qualificar um ato como genocídio sem a devida fundamentação trivializa o conceito, retirando-lhe força normativa e, consequentemente, prejudica a proteção das vítimas. O recurso à manipulação conceptual para sustentar acusações específicas distorce a interpretação das normas aplicáveis e cria um precedente perigoso de subjetividade e seletividade na invocação do direito internacional. Putin invocou o genocídio do povo russo do Donbas como fundamento para reconhecer a legitimidade da secessão das Repúblicas (fantoche) de Luhansk e Donetsk, a 21 de fevereiro de 2022. Três dias depois, invadiu a Ucrânia.

Dito isto, a circunstância de não ter ocorrido um genocídio não significa que não exista o risco de que venha a ocorrer um genocídio. Israel tem, aliás, violado sistematicamente as suas obrigações de prevenção do crime de genocídio, ao não punir criminalmente membros do Governo que manifestamente incitaram à prática de um genocídio, seja através da inanição do povo palestino, seja através do lançamento de armas nucleares sobre Gaza. Foi essencialmente por esta razão que foi objeto de medidas cautelares pelo Tribunal Internacional de Justiça no processo que lhe foi movido pela África do Sul pela violação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.

O risco de genocídio é agora fortemente exponenciado pelo regresso do kahanista fanático Itamar Ben-Gvir ao Governo de Israel e pela complacência de uma administração americana enamorada pela ideia lunática (e criminosa) de levar a cabo uma limpeza étnica com vista a transformar Gaza numa “Riviera do Médio Oriente”.

O genocídio é o crime dos crimes. Mais do que reagir, cabe à comunidade internacional prevenir, antes que seja tarde demais.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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