Opinião

Medicina 4.0 – como a inteligência artificial está a revolucionar a formação dos médicos do futuro

Medicina 4.0 – como a inteligência artificial está a revolucionar a formação dos médicos do futuro

João Conde

Líder do grupo de investigação em Nanomedicina, Professor e Subdiretor de Investigação na NOVA Medical School

Portugal não pode ficar para trás na integração da Inteligência Artificial na formação médica. Só assim poderemos garantir que os médicos do futuro estarão preparados para enfrentar os desafios de uma medicina cada vez mais tecnológica

Nos últimos anos, a inteligência artificial (IA) tem emergido como uma ferramenta transformadora em diversas áreas, e a medicina não é exceção. O seu impacto na prática clínica já é notório, mas uma questão crucial permanece: até que ponto a IA pode contribuir para a formação de médicos mais capacitados e preparados para os desafios do futuro?

A resposta está na integração estratégica da tecnologia nos currículos médicos, no treino clínico e na melhoria das capacidades de diagnóstico e decisão dos futuros profissionais de saúde. A IA não só melhora a aprendizagem teórica, como também possibilita a prática de habilidades técnicas e a otimização da tomada de decisões. A sua implementação eficaz pode significar a criação de médicos mais competentes e mais bem preparados para lidar com a crescente complexidade da medicina moderna.

Historicamente, a formação médica tem sido baseada num modelo tradicional que combina ensino teórico, prática hospitalar e aprendizagem baseada em casos clínicos. No entanto, este sistema enfrenta desafios significativos, como o tempo limitado para a prática clínica, a variabilidade na exposição a casos raros e a necessidade crescente de atualização constante do conhecimento médico. Enquanto a medicina evolui a uma velocidade sem precedentes, muitas universidades continuam a formar médicos como se estivéssemos na década de 1990. Deste modo, a IA surge como uma solução poderosa para colmatar estas lacunas. Ferramentas como a simulação médica avançada, os assistentes virtuais de diagnóstico e as plataformas de aprendizagem adaptativa permitem que os estudantes de medicina tenham acesso a um treino mais abrangente e personalizado. Além disso, a IA pode garantir que todos os estudantes tenham acesso a um mesmo nível de formação, independentemente da instituição em que estudam, ajudando a democratizar o ensino médico.

Um dos maiores avanços na formação médica é o uso de simulações baseadas em inteligência artificial e realidade virtual (RV). Estas tecnologias permitem que os alunos pratiquem procedimentos médicos e intervenções cirúrgicas em ambientes virtuais hiper-realistas antes de lidarem com pacientes reais. Existem ferramentas que oferecem treino em habilidades essenciais de videolaparoscopia, permitindo que os estudantes desenvolvam competências cirúrgicas num ambiente controlado e seguro. Além disso, a introdução de simulações interativas melhora a retenção do conhecimento, permitindo que os estudantes repitam os procedimentos quantas vezes forem necessárias até atingirem a proficiência desejada.

Na realidade, estudantes que utilizam realidade virtual na sua formação cirúrgica apresentam um desempenho 230% superior na execução de técnicas operatórias básicas quando comparados aos métodos tradicionais de ensino. Além da formação técnica, a realidade virtual também é usada para treinar habilidades interpessoais. Simuladores de comunicação permitem que os estudantes interajam com pacientes virtuais em cenários clínicos diversos, melhorando a sua capacidade de escuta ativa, empatia e tomada de decisões sob pressão. O uso de IA e RV não substitui a formação prática tradicional, mas fornece uma base robusta que pode reduzir os erros médicos em fases iniciais da carreira e aumentar a confiança dos estudantes ao lidarem com situações reais.

Outra área de grande impacto da IA na formação médica é o suporte ao diagnóstico clínico. Modelos avançados de machine learning podem analisar milhões de dados médicos em segundos e sugerir diagnósticos diferenciais, fornecendo orientações valiosas aos estudantes.

Estudos recentes mostram que sistemas de IA conseguem identificar doenças como o cancro da mama e doenças pulmonares com uma precisão superior à dos médicos experientes. Embora isso possa levantar preocupações sobre a substituição do trabalho médico, a realidade é que essas ferramentas são concebidas para atuar como assistentes, aumentando a precisão no diagnóstico e permitindo que os médicos tomem decisões mais informadas.

A IA também pode ajudar no ensino da interpretação de exames laboratoriais e de imagem. Algumas plataformas utilizam redes neurais para analisar radiografias e tomografias, ajudando os estudantes a treinar a sua capacidade de deteção de padrões. Além disso, a IA não substitui a experiência clínica, mas atua como um tutor inteligente, que guia os estudantes na tomada de decisões e os ajuda a compreender melhor os padrões de diagnóstico. Dessa forma, evita-se a dependência cega da tecnologia, promovendo um equilíbrio entre conhecimento humano e inteligência artificial.

A IAtem, igualmente, um impacto significativo na personalização do ensino médico. Plataformas de e-learning com machine learning ajustam o conteúdo didático ao ritmo e necessidades individuais de cada estudante. Isso significa que cada futuro médico pode aprofundar as áreas onde apresenta mais dificuldades e progredir de forma mais eficiente. Por exemplo, sistemas de aprendizagem adaptativa podem identificar lacunas no conhecimento dos estudantes e fornecer recursos específicos para colmatá-las. Estudos indicam que a personalização do ensino melhora significativamente a retenção do conhecimento e a capacidade de resolução de problemas em cenários clínicos complexos.

Apesar dos benefícios, a adoção da IA na formação médica não está isenta de desafios. O primeiro e mais evidente é a necessidade de garantir que os futuros médicos mantenham uma abordagem humanizada no cuidado ao paciente. A tecnologia não pode substituir o julgamento clínico e a empatia, qualidades fundamentais na medicina. Outro desafio é a necessidade de formação dos próprios docentes, que muitas vezes não estão familiarizados com as ferramentas de IA. Além disso, questões éticas, como a privacidade dos dados médicos e o risco de viés algorítmico, devem ser abordadas de forma rigorosa para garantir uma implementação justa e segura destas tecnologias. Adicionalmente, existe a preocupação de que os médicos dependam excessivamente das recomendações fornecidas pela IA, reduzindo a sua capacidade de pensamento crítico. Para evitar isso, é fundamental que as ferramentas de IA sejam utilizadas como auxiliares de decisão e não como substitutos do julgamento clínico.

A integração da IA na formação médica não é uma visão futurista, mas sim uma realidade em crescimento. Para que Portugal acompanhe esta evolução, é essencial investir na modernização dos currículos académicos, na formação de docentes para o uso destas ferramentas e na criação de parcerias entre universidades, hospitais e empresas tecnológicas. Dado o impacto crescente da IA na medicina, Portugal precisa de uma estratégia nacional para garantir que a formação médica acompanha esta transformação tecnológica. Isto implica um investimento coordenado entre universidades, hospitais e centros de investigação, promovendo a criação de programas académicos focados em IA, parcerias com empresas tecnológicas e a disponibilização de financiamento para infraestruturas digitais. Países como o Reino Unido e a Alemanha já implementaram iniciativas governamentais para a integração da IA na saúde, apostando em cursos especializados e na modernização dos currículos médicos. Se Portugal não seguir este caminho, corre o risco de ficar para trás, formando médicos que, apesar de bem preparados no conhecimento tradicional, não terão as competências digitais essenciais para a Medicina 4.0. O futuro da saúde não dependerá apenas dos avanços tecnológicos, mas da capacidade de formar profissionais que saibam utilizá-los com segurança, ética e espírito crítico.

O tempo para debates teóricos acabou. A pergunta que se impõe não é se devemos integrar IA na formação médica, mas quando e como o faremos de forma agressiva e eficaz. Portugal tem a oportunidade de ser pioneiro nesta revolução ou de ficar estagnado, vendo os seus médicos formados com métodos do século XX enquanto o mundo avança para um modelo de Medicina 4.0. Universidades deveriam assumir a liderança, criando um departamento específico de Medicina Digital e IA, onde os estudantes aprendam a trabalhar com algoritmos de suporte ao diagnóstico, robótica assistida e plataformas adaptativas de ensino. Mais do que acrescentar módulos opcionais, a IA deve ser parte integrante da formação médica desde o primeiro ano. Os estudantes não podem ser apenas consumidores passivos destas tecnologias; devem aprender a interpretar, validar e até desenvolver novas soluções baseadas em IA. Modelos como o da Harvard Medical School, que já introduziu cursos de machine learning aplicados à Medicina, devem servir de referência para a reestruturação dos currículos médicos portugueses. É essencial investir em simuladores médicos com IA e realidade virtual, onde os estudantes possam treinar cirurgias e emergências médicas em ambientes hiper-realistas, tal como acontece já em Harvard e Stanford. Se queremos formar médicos competitivos a nível global, não basta “adaptar” o ensino tradicional – temos de o reinventar. Além disso, o papel dos docentes precisa de uma reformulação radical. Muitos dos atuais professores de medicina nunca tiveram contacto com IA e continuam a ensinar com base em paradigmas que já estão a ser superados. É urgente um programa nacional de requalificação para docentes, preparando-os para ensinar a Medicina do futuro, pois não podemos formar médicos do futuro com professores que desconhecem as ferramentas que irão moldar a prática clínica nas próximas décadas. A criação de um Erasmus Tecnológico para Medicina, com intercâmbios e estágios em centros de inovação internacional, garantiria que os nossos estudantes tivessem contacto direto com as melhores práticas na aplicação da IA à saúde. Sem estas mudanças, continuaremos a formar médicos para um mundo que já não existe, enquanto outros países lideram a revolução digital na medicina.

A escolha é clara: ou Portugal investe agora e assume uma posição de vanguarda, ou arrisca a tornar-se irrelevante na formação médica global. A resistência à mudança não pode continuar a ser uma desculpa para manter o status quo. Só assim poderemos garantir que os médicos do futuro estarão preparados para enfrentar os desafios de uma medicina cada vez mais tecnológica, sem nunca perder de vista a essência do cuidado humano. O futuro da saúde não depende apenas da tecnologia, mas sim da forma como a utilizamos para potenciar o melhor da medicina: o conhecimento, a empatia e a arte de curar.

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