Opinião

A (falta de) autonomia estratégica da UE

A (falta de) autonomia estratégica da UE

Sérgio Gonçalves

Eurodeputado do PS

Se em matéria de energia a Europa está a posicionar-se como líder em tecnologias não poluentes, como o hidrogénio verde, a verdade é que somos dependentes de países terceiros em termos de matérias primas e estamos significativamente atrasados na transição digital e no desenvolvimento de tecnologias como a inteligência artificial

A autonomia estratégica é a capacidade de um Estado ou entidade tomar decisões e agir de forma independente, sem depender de terceiros. No contexto da União Europeia, isto significa ter independência suficiente em áreas como defesa, segurança e política externa, permitindo-nos agir como e quando considerarmos necessário, sem precisar do apoio de países terceiros.

Nas últimas décadas, a União Europeia tem dependido dos Estados Unidos para a sua defesa. Esta dependência surgiu da perceção de que os EUA eram um aliado inabalável, sempre pronto a defender-nos. Hoje, essa certeza está em causa. A eleição de Donald Trump, combinada com a existência de uma guerra às portas da Europa, obriga-nos a repensar esta relação. Trump já expressou, por diversas vezes, ceticismo em relação a alianças multilaterais, como a NATO, e sugeriu que os Estados Unidos poderiam não defender os aliados europeus em caso de agressão. Esta incerteza, aliada às ameaças da Rússia - que, além de ter invadido a Ucrânia, dá sinais de preparar novas ações hostis contra a Europa - exige uma resposta firme da UE.

Para alcançar uma verdadeira autonomia em matéria de defesa, a União Europeia deve reforçar as suas capacidades militares e cumprir as metas definidas pela NATO. No entanto, devemos evitar extremismos. Algumas vozes, incluindo a de Trump, defendem que os membros europeus da Aliança gastem 5% do PIB em defesa - um valor que os próprios EUA não alcançam. Mais do que aumentar despesas indiscriminadamente, é fundamental que a UE invista na produção própria de equipamentos de defesa. Se vamos alocar mais verbas para este setor, este investimento deve impulsionar a nossa economia. Por outras palavras, este dinheiro deve beneficiar a indústria europeia. Portugal, por exemplo, pode assumir um papel de liderança na produção de calçado e têxteis técnicos, essenciais para o setor.

Mas quando discutimos autonomia estratégica não estamos apenas a falar de defesa. Estamos também a falar de energia, de acesso a matérias primas e de inteligência artificial. Se em matéria de energia a Europa está a posicionar-se como líder em tecnologias não poluentes, como o hidrogénio verde, a verdade

é que somos dependentes de países terceiros em termos de matérias primas e estamos significativamente atrasados na transição digital e no desenvolvimento de tecnologias como a inteligência artificial.

A falta de autonomia estratégica nestas áreas tem impacto em muitos setores da nossa economia como, por exemplo, na indústria automóvel. Este setor é um pilar da economia europeia que emprega mais de 13 milhões de pessoas. Em Portugal, estima-se que mais de 167 mil postos de trabalho dependem deste setor. Contudo, só em 2024, mais de 80 mil destes empregos foram eliminados na Europa, revelando a crise que atravessa o setor.

A crise desta indústria deve-se, em parte, à excessiva dependência da Europa de fornecedores externos, sobretudo de fabricantes chineses no mercado de veículos elétricos. Além disso, as cadeias de produção que envolvem países terceiros expõem a indústria europeia a tarifas e outras medidas comerciais protecionistas, como as que Donald Trump já começou a implementar.

Para inverter esta tendência, é crucial reforçar o investimento público no setor. Isso passa por garantir a produção suficiente de baterias na Europa, uma vez que estas representam uma parte significativa da margem de lucro dos veículos elétricos. Manter esta cadeia de valor no continente europeu é vital para a nossa economia. Também é necessário assegurar que a indústria europeia consegue competir a nível global, modernizando fábricas, e investir em infraestruturas de carregamento que são essenciais para estimular a procura por veículos elétricos. Em suma, os consumidores europeus devem ter acesso a carros produzidos na Europa, com componentes europeus e a preços competitivos.


Num contexto geopolítico e económico incerto, é urgente que a Europa desenvolva uma verdadeira autonomia estratégica em tantos setores quanto possível. Isto passa por criar oportunidades de reindustrialização na Europa, assegurando cadeias de valor dentro da União e incentivando governos e cidadãos a comprarem produtos à indústria europeia. Só assim poderemos garantir a nossa segurança, proteger empregos e assegurar a competitividade das nossas economias.

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