Opinião

O rastreio neonatal e a sequenciação genética: o céu é o limite?

Marta Zegre Amorim

Médica Geneticista

Se, na sua maioria, as doenças testadas são genéticas, porque não aplicamos esta tecnologia de forma mais generalizada ao rastreio neonatal? Porque não estudamos imunodeficiências graves?

Não raras vezes na minha consulta, um casal com um filho com problemas no seu desenvolvimento, me diz: “mas o teste do pezinho estava normal!” ou “fiz a amniocentese na gravidez e veio negativa!”. Exames sem achados anormais, podem ser falsamente tranquilizadores, se não soubermos o que estamos a testar e a excluir. E raramente testamos muito. Fala-se tanto do genoma e de sequenciação genética... porque não estamos então a testar muito?

Vamos por partes. Existe um risco de cerca de 3%, em todas as gravidezes, de uma criança com malformações ao nascimento. Nem todas estas malformações são de etiologia genética. Algumas resultam da exposição a agentes teratogénicos, capazes de causar danos ao embrião, por terem capacidade de interferir nos processos do desenvolvimento embrionário. São exemplos alguns fármacos (ex. valproato de sódio e varfarina), doenças maternas (ex. diabetes mellitus não controlada ou o lupus), consumo de álcool ou infecções (ex. síflis e o citomegalovírus).

Dentro das doenças genéticas temos por exemplo o desequilíbrio dos números dos cromossomas, que são habitualmente erros esporádicos, não herdados. E temos então as doenças genéticas por alteração da sequência de letras num gene. Estas são variadas (cerca de 7000), umas sistémicas, outras afetando mais um órgão e nem sempre congénitas (várias doenças têm aparecimento mais tardio na infância, ou mesmo na vida adulta). A sua suspeita, por história familiar ou achados ecográficos, resulta numa vigilância diferente e exames especiais.

Mas nem todas as doenças causam alterações ecográficas. Algumas dão indícios ao nascimento. O diagnóstico precoce de algumas doenças da infância é possível através um conjunto de testes realizados em amostra de sangue, colhida por picada no calcanhar do bebé, e assim ganha o nome porque são vulgarmente conhecidos - teste do pezinho. A colheita tem lugar nos primeiros dias de vida.

E como escolhemos que doenças estudar? A decisão é apoiada na gravidade da doença - com risco de vida ou perturbação do desenvolvimento intelectual -, mediante disponibilidade de teste sensível e específico, tratamento disponível, eficaz e com evidente vantagem para a criança.

Em Portugal, o Programa Nacional De Rastreio Neonatal (PNRN), iniciou-se em 1979, apenas com o despiste da fenilcetonúria, à qual se juntou o hipotiroidismo congénito em 1981. A partir de 2004, a emergência de novas tecnologias de testagem, permitiu o crescimento do número de doenças testadas. Atualmente, Portugal é dos países no mundo que mais doenças testa: são 28, entre doenças do metabolismo, o hipotiroidismo congénito, a Fibrose Quística, a Drepanocitose e o estudo piloto para Atrofia Muscular Espinhal. Mas são 28 e não 7000 e baseados na sua maioria no doseamento de metabolitos relacionados com a doença em causa.

Os estudos genéticos, estudos aos erros do nosso ADN, evoluíram muitíssimo nos últimos dez anos: não só permitem o estudo de centenas a milhares de doenças ao mesmo tempo, como têm o potencial de diagnosticar doenças mesmo antes da sua manifestação clínica. Então, se na sua maioria, as doenças testadas são genéticas, porque não aplicamos esta tecnologia de forma mais generalizada ao rastreio neonatal? Porque não estudamos imunodeficiências graves, hipercolesterémia, arritmias cardíacas com risco de morte súbita ou outras centenas de síndromes associados a atraso do desenvolvimento?

Esta ideia não é de todo nova, nem inexplorada. Existem estudos pilotos a serem desenvolvidos em vários países no mundo – o chamado rastreio neonatal genómico.

Vejamos então quais os principais entraves à sua imediata aplicação. Logo à partida surge a aplicabilidade. Há medidas a oferecer? É do interesse da criança esse diagnóstico? Em segundo lugar, vêm as limitações da técnica e a indeterminação dos resultados: nem todas as alterações genéticas associadas a doença são detetáveis pelas técnicas atuais e não compreendemos tudo o que encontramos. Resultados indeterminados apenas aumentariam a ansiedade parental e tal não é compatível com o objetivo de um teste de rastreio: dotar médicos e famílias de estratégias clínicas comprovadas.

Não podemos fugir ao tema preço e a consequente acessibilidade e universalidade pretendida. Há custos associados à técnica, às infraestruturas necessárias, à formação dos recursos humanos, à investigação necessária. No entanto, tem se verificado uma queda contínua dos custos de sequenciação.

Podendo a sequenciação massiva incluir todos os genes, quais deverão ser selecionados? Deverão ser incluídas as doenças muito raras? Doenças sem tratamento comprovado? Sem possibilidade de confirmação por técnica não genética? E ainda mais difícil, com desenvolvimento mais tardio na infância, ou mesmo na idade adulta? Com penetrância incompleta (ou seja, alterações genéticas que não se traduzem em doença na totalidade dos indivíduos)?

E como se protegem os dados? Como se protege a escolha individual, quando se tratam de crianças? Como se aumenta a literacia e a decisão informada? há claras barreiras éticas, mas há limites nebulosos e ausência de consenso internacional.

O tema está em cima da mesa: a importância do diagnóstico atempado para a otimização do prognóstico e sucesso terapêutico de uma doença assim o ditam; a diminuição dos custos de sequenciação, da incerteza dos resultados e o aumento de respostas terapêuticas para estas doenças assim o impulsionam.

A genética promete continuar a fazer parte do debate, mas não duvido que será o caminho.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate