Opinião

Uma empresa que se preze

Uma empresa que se preze

Tiago Félix da Costa e Nuno Igreja Matos

Sócio da Morais Leitão e Associado Principal da Morais Leitão

No ambiente atual, qualquer empresa pode ver o seu nome associado a um ilícito, seja ele verdadeiro ou não. A diferença está na preparação: mecanismos internos bem definidos, resposta imediata e controlo eficaz da narrativa são essenciais para mitigar riscos e salvaguardar a reputação

Por azar, por incúria, com dolo, por denúncia interna ou externa: todas as empresas vivem sob a iminência da notícia de um ilícito, seja essa notícia real ou insidiosamente divulgada. Ilícitos que tanto podem ter ressonância criminal e contraordenacional, como somente apontar a violações de regras internas. Para as empresas, apanhadas nesta crise, as perguntas que sempre se colocam quando a notícia surge – e para as quais as melhores empresas implementam respostas antes de qualquer suspeita – gravitam entre duas clássicas inquietações: podíamos ter evitado isto? o que fazer agora?

Qualquer empresa que se preze tem hoje, obrigatoriamente, mecanismos de deteção, prevenção e gestão do ilícito. O nível de escrutínio a que se assiste, tanto por parte das autoridades, sejam elas o Ministério Público ou os reguladores setoriais ou gerais, como por parte dos media, é exponenciado pela enorme carga de legislação e de regulação que as empresas enfrentam nos nossos dias, forçando-as a este exercício permanente de auto-vigilância.

No entanto, com preocupante frequência estes mecanismos são concretizados com políticas vagas e indeterminadas, quando não redundam apenas em marcos formais do compliance a que as empresas estão legalmente obrigadas. Aquilo que a realidade nos tem mostrado é que esses instrumentos nem sempre estão calibrados para o fatídico dia em que o azar, a incúria ou a denúncia acontece. As responsabilidades indecisamente atribuídas geram lentidão e confusão. Os conceitos vagos alimentam incertezas. E quando o ilícito se revela, o stresse organizacional instala-se, levando à paralisia. Com duplas consequências: por um lado, uma reação indevida indicia uma falha de compliance, fazendo somar ao ilícito noticiado um novo ilícito procedimental; por outro lado, a hesitação da empresa agrava, aos olhos de quem possa estar a ver, a estranheza da suspeita, porque o silêncio, na sociedade do ruído, aparenta culpa.

A solução é fácil de enunciar e difícil de concretizar: o que se pede é que os mecanismos internos – códigos de conduta, canais de denúncia e planos de prevenção de ilícitos – sejam adaptados ao caso concreto e de natureza prática, orientados para a ação e que se afastem da tentação de regular tudo. Mas isso não basta. Cada dever e risco organizacional deve ser acompanhado pela definição de um responsável e pela instituição de um procedimento próprio de investigação. As funções devem ser minuciosamente distribuídas, através de descrições claras (o que não se confunde com enunciações prolixas), hierarquicamente definidas (o que não se confunde com responsabilidades plurais), e prazos de resposta (o que não se confunde com advérbios de tempo). Se assim for, a eclosão da notícia, por muito perturbadora que possa ser, não abalará a serenidade procedimental, nem a credibilidade da investigação interna que a mesma impõe: haverá sempre um processo, com passos claros, para seguir.

E, ainda assim, tudo isto pode ser insuficiente, ou não fosse milenar a lição que ensina que a realidade sempre supera a teoria. Daquilo que vemos e vivemos, conseguimos criar uma lista de prioridades para a empresa que se preza: (i) agir imediatamente sobre a suspeita, isto é, iniciar, sempre que possível, uma investigação antes das autoridades; (ii) controlar a narrativa, antecipando as comunicações sobre as suspeitas, tanto internamente, como externamente, aos clientes, fornecedores, reguladores e demais autoridades, consoante necessário; (iii) localizar os factos que possam indiciar o envolvimento da empresa no ilícito e levá-los ao conhecimento das autoridades como uma descoberta interna; (iv) afastar as “mulheres de César”, ou seja, as suspeitas sobre uma determinada área devem ser geridas por outros departamentos; as suspeitas que visem diretores ou administradores, devem ser sempre investigadas externamente, e, idealmente, por quem beneficie de independência e de sigilo profissional, para evitar o futuro aproveitamento probatório dessas informações contra a organização.

Sabemos bem como a natureza humana dificilmente se mobiliza para um problema futuro, descredibilizando o risco invisível como impossível, sobretudo se representar custos para o hoje, sejam financeiros, sejam de energia interna. Mas estes tempos que vivemos recompensam os pessimistas, por razões que são fáceis de entender. Primeiro, porque prevenir e começar a investigar imediatamente dá às organizações o poder de controlar a narrativa; segundo, porque nunca a Lei incentivou tanto o reporte de ilícitos e de provas como hoje, garantindo às empresas, senão a eliminação do risco sancionatório, pelo menos a sua minimização; e, em terceiro, porque esta cautela procedimental se torna ainda valiosa quando as diferenças entre o “ilícito na empresa” e o “ilícito da empresa” estão a ficar tão esbatidas. Mais a mais quando a complexificação das infrações empresariais tem levado os Tribunais a procurar atalhos decisórios – e o atalho mais em voga é o que se permite confundir a falha nos procedimentos internos com uma cegueira deliberada perante o ilícito.

É no inevitável dia da notícia do ilícito, seja ela verdadeira ou falsa, que se tornam visíveis as incalculáveis vantagens do pessimismo. Que Foucault nos permita a indecência de corrigir o título do seu célebre livro “Vigiar e punir”. O mote que se impõe hoje a qualquer empresa que se preze é: “Vigiar para não ser punido”.

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