Gosto de pessoas, continuo, ingénuo, a crer que o mundo sempre foi uma batalha de pessoas boas a travar pessoas más
Nasci português, sou homem, branco, heterossexual. Reparem só que quatro coisas para se dizer de entrada, e nenhuma escolhi. Quatro coisas que me aconteceram e constituem pequena parte da evidência do que sou. Quatro pedrinhas de estrutura que me dizem constantemente: és isto, e então? Não as exibo, não as escondo, nenhuma me traz um orgulho adicional, nenhuma me diminui. Olhei em volta, toda a vida, olhei os que estavam mais perto e os que habitam lá longe e nem conheço, e soube sempre que lhes aconteceu o mesmo. Nasceram num sítio, com uma cor e uma genitália, e uma sexualidade. Andamos todos por cá e seria uma maravilha em que já não acredito, uma utopia daquelas gordas e infantis, que nos déssemos todos bem, ou que pelo menos não agredíssemos os diferentes. O que não sinto, lamento, por mais que me busque, é qualquer culpa por factos simples que me aconteceram e não decidi. Português, homem, branco, isto é óbvio, à vista de todos, acrescento hetero por informação suplementar, obviamente não-essencial, mais uma que me sucedeu. Vivo ainda a tempo de verificar o que temia só de livros distópicos. Que cada novo exército erguido em nome de uma libertação muito bem intencionada, tantas vezes com a palavra “amor” pelo meio, semeia gritos de morte. Apontam, avisam, concluem: se isto é um homem branco, então é o diabo, e carrega nele todos os pecados do mundo. Quem aqui se lembra da advertência sábia e triste de Primo Levi: “Vós que viveis tranquilos nas vossas casas aquecidas, vós que encontrais regressando à noite comida quente e rostos amigos, considerai se isto é um homem, quem trabalha na lama, quem não conhece paz, quem luta por meio pão, quem morre por um sim ou por um não, considerai se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome, sem mais força para recordar.” Lembrais ou não? Primo Levi, homem, italiano, levado pelo pescoço para a mais vil das masmorras da humanidade por pertencer ainda a outro grupo, Primo Levi, judeu. E este homem italiano que sobreviveu para contar sempre soube que foi esventrado pelos nazis dos 1940, não por outros homens brancos alemães que não eram ainda nascidos.
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