Exclusivo

Opinião

Entre o direito e o “desver”

Entre o direito e o “desver”

Rodrigo Guedes de Carvalho

Jornalista e escritor

O que se pede no ofício de defender, acusar ou julgar, não é que as pessoas esqueçam que viram, é que sejam sérias e íntegras

Eu nem sonhava que seria um dia jornalista quando via os filmes de tribunal e o juiz, de dedo sério em riste, avisava os jurados: vossas excelências deverão ser cegos e fazer ouvidos moucos a tudo o que tendes lido e visto nos jornais sobre este caso. Basta olhar para a estatueta da justiça que segura uma balança de olhos vendados. Não era preciso ser muito maduro para entender o óbvio. À justiça o que é da justiça, abaixo o tribunal da opinião pública ou publicada. Acrescente-se aquela prova espantosa que poderia desbloquear dúvidas e carimbar veredictos, mas que afinal não é válida, porque foi obtida fora dos protocolos, ou qualquer outro detalhe técnico. Lá volta o juiz a avisar o júri: acabámos de saber que o vídeo ontem aqui exibido pela acusação não reúne os requisitos de legalidade exigível para poder ser considerado, por isso volto a pedir a vossas excelências que façam de conta que não viram. Não o considerem, ok? Apaguem-no da memória. Vá lá. Sabemos que se pede algo que roça o impossível. Talvez quando os donos disto tudo forem de facto os robôs, até lá não acredito numa arte humana do “desver”, à falta de melhor palavra. O que se pede no ainda humano ofício de defender, acusar, julgar, condenar ou absolver, não é que as pessoas esqueçam que viram, é que sejam sérias e íntegras para respeitarem as leis que alguém escreveu. O jornalismo tem de ter consciência ética, social e cívica. As primeiras obrigações que nos ensinam são o presumível, o suspeito, todo o linguajar que começa com alegado. Qualquer jornalista com alguns anos de carreira já não precisa de supervisão do chefe: sabe que terá de escrever para sempre alegado, suspeito, presumível. As palavras mágicas que respeitam uma presunção de inocência (alegadamente) e que, ainda por cima, têm a enorme vantagem de evitar processos. Depois, muito tempo depois lá vem a sentença. Mas vem? Calma. Há ainda os recursos. Alcançar a espantosa meta do “transitou em julgado” pode trazer muitos cabelos brancos. Dito isto, percebe-se que a correta enunciação e a cautela levam sempre ao alegado, suspeito, presumível. E ao desver. Além de alguém ser presumível até não sei quantos passos fechados a cadeado, pode um juiz dar-nos ordem de esquecer que vimos aquela prova em tribunal ou aquela notícia na comunicação social. Tudo certo. Ainda bem que assim é, e que seja para todos.

Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para continuar a ler

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate