Se não percebe porque é que isto está relacionado com David Lynch, está no caderno errado
É muito fácil colocar David Lynch no pote pós-narrativo, o pote do surto psicadélico que não quer saber das coordenadas da realidade humana e da narração. Não concordo. Haverá alguma coisa mais real ou realista do que a linguagem dos nossos sonhos que nos benzem ou atormentam durante anos e anos como anjos ou fúrias? Um sonho é imaterial, mas é ultrarreal. Há alguma coisa mais poderosa do que um ícone, um mito, uma metáfora? É por isso que Lynch era do real; a sua linguagem não era a prosa, sim, mas tinha uma poesia ancorada na realidade humana mais íntima: a linguagem dos sonhos; os filmes de Lynch são sonhos acordados com um enredo que é lógico e sequencial, se aceitarmos a gramática onírica, se nos deixarmos levar por um fluxo narrativo que confia mais nos fantasmas do que na gravidade. Os filmes de Lynch parecem obscuros, pedantes, impenetráveis, onanismos pós-moderninhos, mas na verdade comunicam a linguagem do medo, do pesadelo e do sonho. É por isso que há ali cenas que nos queimam a memória como um ferro quente a marcar gado: o sexo de “Coração Selvagem”; o terror impagável da chamada telefónica impossível de “Estrada Perdida”; a estranheza insuperável de “Dune” (muito melhor do que o “Dune” de Villeneuve, muito previsível e incapaz de captar o irracional); a bondade inverosímil e inesquecível do velhote que procura um irmão atravessando a América num trator (“Uma História Simples”). Do sexo à bondade, passando pelo terror, nada é explicado, apenas invocado. Pedro Mexia, na semana passada, escreveu com muita razão o seguinte: mais do que uma fuga da realidade ou do mundo, Lynch representa um reencantamento do mundo. É uma carga de cavalaria onírica sobre o mundo e não uma retirada.
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