Opinião

Carter: o fim de um século

Carter: o fim de um século

Miguel da Câmara Machado

Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Precisamente cinquenta anos depois de ter apresentado uma especial (e vencedora) campanha à presidência dos EUA, o centenário Jimmy Carter partiu antes de começar uma nova era nos EUA

1.

Uma eleição histórica, há quase 50 anos

Morreu Jimmy Carter, o primeiro presidente dos Estados Unidos da América (EUA) a nascer num Hospital, no seu estado, da Geórgia, em 1924, então apenas um de 48 estados (só em 1959 o Alasca e o Havai se juntariam à União), sob uma bandeira que tinha, para além das 13 riscas que representam as 13 colónias/estados “originais”, 48 estrelinhas, menos duas do que as 50 estrelas da bandeira a que estamos habituados e que Carter veio a defender, como Presidente, após a sua eleição em 1976.

A eleição de 1976 foi, curiosamente, algo especial em tempos muito pendulares, como aqui escrevia há umas semanas: se LBJ tinha “esmagado” os opositores há sessenta anos, em 1964; Nixon teve resultados ainda mais fortes em 1968 e 1972 e Reagan em 1980 e 1984. Mesmo a eleição isolada de George H .Bush em 1988 ou Clinton em 1992 implicaram resultados em que a distância entre o vencedor e o vencido foi maior. A eleição de 1976 implicou uma distância no voto popular de pouco mais de milhão e meio de votos (num país continental e gigante, com mais de 80 milhões de eleitores), com mais estados (27) a votar a favor do então presidente Gerald Ford, contra o novíssimo Presidente Jimmy Carter, que venceu em apenas 23 dos estados.

Assim, a eleição que elegeu Carter foi surpreendente e “histórica” àquela época desde, ainda antes de começar, por se defrontarem dois candidatos que nunca tinham concorrido a eleições presidenciais (o Presidente Ford chegou a Vice-Presidente de Richard Nixon sem ter pertencido ao ticket de 72 – após a renúncia ao cargo de Spiro Agnew, e Nixon tinha perdido eleições em 1960 contra John Kennedy, pelo que as “máquinas partidárias” estiveram mais “oleadas” até 1976).

No entanto, ainda antes dessa eleição geral, Carter arrebatou, um pouco como Obama – ou mesmo Trump – um partido que não o conhecia e foi um outsider que venceu contra as expetativas iniciais.

2.

Jimmy Who?

Há precisamente 50 anos, em dezembro de 1974, James (“Jimmy”, como sempre quis ser conhecido) anunciou a sua campanha presidencial em Washington D.C. O seu discurso de abertura pode lembrar outros que animaram gerações mais próximas da nossa (fundado em palavras como “igualdade”, “otimismo” e “mudança”). Então, enfrentava outros 16 candidatos (!), com maior reconhecimento e peso no partido democrata que perguntavam: Jimmy Who?, tendo recebido repetidamente a resposta My name is Jimmy Carter, and I'm running for president (“O meu nome é Jimmy Carter e estou a concorrer à presidência”).

Curiosamente, Jimmy viria a ser o único presidente dos EUA, até 2024, a adotar, na sua inauguration, o apelido em vez do nome próprio. Recentemente, tanto Bill Clinton, como Joe Biden, apesar de serem conhecidos pelos seus diminutivos, fizeram juramentos e assinam como William ou Joseph.

Há um lado de campanha e “presidência de proximidade” (conhecida por muitos de nós) que foi verdadeiramente inaugurada pelo fazendeiro da Geórgia, que cresceu numa quinta do sul dos EUA, a cultivar os amendoins que lhe ficaram colados à imagem. Carter aproveitou-se da sua imagem mais distante dos meandros de Washington, D. C., ainda muito ferida pelo escândalo Watergate e fez uma campanha minuciosa nos primeiros estados, determinantes para vencer as primárias, multiplicando-se em atos de campanha no Iowa e no Novo Hampshire. Ainda antes de os outros 15 candidatos começarem as suas campanhas, já tinha feito mais de 200 discursos e, depois, com uma excelente campanha, em nove meses passou de (relativo) desconhecido a presidente-eleito, enfrentando Ford em debates televisivos que já não existiam desde 1960.

3.

Jimmy Carter, o 39.º Presidente dos EUA

No meu último texto, na sequência do perdão presidencial de Biden ao filho, recordava o perdão de Ford (o antecessor de Carter) a Nixon, que muitos dizem ter sido o que verdadeiramente impediu o republicano de vencer em 1976, com uma família amada pela população americana, um estilo recatado, um porte desportivo e uma postura muito moderada, contra um candidato democrata mais “radical” nas ideias e nas propostas.

Tentei lembrar, também, o outro perdão relevante relacionado com o caso Watergate, concedido pelo Presidente Carter a Gordon Liddy (um dos principais advogados dos republicanos) que tentou pacificar alguma turbulência da agitada política americana dos anos 70. A eleição de Carter contra Ford sempre me inspirou por vários momentos-chave, a começar pelo discurso lido pela Primeira-Dama, uma vez que o presidente tinha perdido a voz nos últimos dias de campanha. A transição de poderes foi, também, das mais organizadas da era moderna, tendo Carter montado uma equipa, dotada de fundos e meios, para que pudesse entrar em funções em janeiro de 1977, a todo o vapor.

Um dos seus primeiros atos foi, também um “mega-perdão-presidencial”, cumprindo uma promessa eleitoral, através da Proclamação 4483, que declarava uma amnistia incondicional para todos os desertores da Guerra do Vietname, dentro de um certo espírito de radicalismo que marcou a sua vitória, mesmo interna, no partido democrata, contra o mais “moderado” George Wallace (mais “à direita” do que Ford em muitas matérias, como quanto à segregação racial, por exemplo). Jimmy Carter terá sido o último Presidente-eleito, democrata, mais “à esquerda”. Clinton ou Obama, e mesmo Biden, foram seguramente menos progressistas e inovadores, especialmente quando tiveram liberdade para tal, nos segundos mandatos.

No entanto, a presidência de Carter não deixa as melhores memórias: ficou marcada por um agravar de uma crise económica, foram tempos de inflação e recessão contínuas, intensificadas pela crise energética de 1979. Durante este mandato, os EUA tiveram ainda a primeira “paralisação governamental” de sempre, em maio de 1980, embora esta tenha afetado apenas a Comissão Federal do Comércio.

O Presidente Carter tentou acalmar vários conflitos em todo o mundo (isso foi importante para o caminho até ao prémio Nobel que recebeu em 2002), tendo deixado boas intenções no Médio Oriente, e conseguido a assinatura dos Acordos de Camp David, bem como a devolução do Canal do Panamá ao Panamá e a assinatura do tratado de redução de armas nucleares com o líder soviético Leonid Brezhnev. O seu último ano viria a ser marcado pela crise dos reféns iranianos, que contribuiu determinantemente para que perdesse as eleições de 1980 para Ronald Reagan, contra quem fez uma campanha hoje considerada falhada.

Em vez de defender o seu legado, a campanha Carter virou mais “à esquerda” e atacou Reagan, as suas gaffes, a sua idade, e o seu belicismo, focando-se logo no opositor. No entanto, internamente, Carter teve primeiro um opositor de peso, tendo sido desafiado pelo senador Ted Kennedy, em novembro de 1979 (um mês antes de se reapresentar a eleições), o que enfraqueceu os democratas logo nas primárias. E, no seu discurso na convenção presidencial do verão, Ted Kennedy apenas criticaria Reagan, nunca chegando a apoiar Carter.

A eleição de 1980 teve ainda uma outra especificidade: um candidato derrotado nas primárias republicanas, John B. Anderson, apresentou-se como third-party candidate, mais liberal do que Reagan e moderado do que Carter, mas sem peso eleitoral. Evitou mais debates, havendo apenas um, em que Reagan superou todas as expetativas e repetiu um there you go again (“lá está ele outra vez”) contra argumentos mecânicos e repetidos de Carter. Este tornou-se mais um slogan de Reagan, que esmagou em novembro de 1980.

4.

Jimmy Carter, there you go again!

Com apenas 56 anos, o antigo Presidente passou a ser um dos mais novos e energéticos antigos Presidentes e não se manteve afastado da vida pública e política. Decidiu dedicar-se principalmente à diplomacia e trabalhou com os seus sucessores, mais em especial com alguns deles, com momentos de afinidade mesmo com o pai e filho Bush, com Clinton e com Obama, tendo estes presidentes aproveitado a sua experiência no Médio Oriente, mas acabando Carter desiludido com parte do que aconteceu na presidência Clinton, com o que se passou no Iraque – depois de inicialmente ter apoiado Bush após o 11 de setembro – ou com o facto de Obama não ter fechado Guantanamo. Carter chegou, internamente, a apoiar Romney, em 2012, apesar de se ter reunido com Obama nas eleições gerais. Foi um defensor de grandes causas “antes de tempo”, lutando contra as alterações climáticas (foi o primeiro Presidente a instalar painéis solares na Casa Branca).

Foi um recordista: o mais longevo dos presidentes dos EUA, o único a atingir 100 anos, e, depois de 77 anos casados, com Rosalynn Smith Carter, viu partir o amor da sua vida, a 19 de novembro de 2023, assim terminando o também mais longo “casamento presidencial” americano. Viveu um ano sem Rosalynn, de que se despediu, lembrando outros power couples presidenciais, como John e Abigail Adams, dizendo: Foi a minha parceira em pé de igualdade em tudo o que atingi. Deu-me orientações sábias e encorajamento quando precisei. Enquanto Rosalynn estivesse no mundo, sempre soube que alguém me amava e apoiava”.

Com a partida de Jimmy Carter, dos seus rivais Gerald Ford ou Ronald Reagan, de “cavalheiros” na política, que respeitavam e elevavam os adversários, termina uma era. Muitos diziam que Carter sobreviveria a Biden, ou até mesmo a Clinton, que teve um susto recentemente, mas Carter, como todos os grandes Homens, teve o seu fim. E só podemos pedir que a sua partida traga novamente as palavras duras que dirigiu mesmo a políticos do seu partido e vire Washington D.C. “ao contrário”, no melhor dos sentidos, como fez entre 1974 e 1980. Talvez o seu espírito viva na Casa Branca e no Congresso e nos possa dar a esperança e otimismo de que precisamos em 2025, como aquela que motivou a sua campanha em 1975.

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