Um dos problemas da Consoada é, precisamente, a repetição. Não é fácil dizer qualquer coisa que não seja previsível acerca do Natal
Considere a seguinte ideia: a garoupa sorumbática vestiu as calças de flanela turquesa. É bastante improvável que esta frase tenha alguma vez sido escrita na língua portuguesa — ou em qualquer outra língua, na verdade. Quem escreve procura fugir do que outras pessoas disseram antes e, portanto, é boa ideia começar um texto assim. Claro, também é conveniente que a frase faça sentido. E esta, sendo inédita, tem o problema de ser absurda. As garoupas são incapazes de vestir calças. Não há dúvida de que existem garoupas sorumbáticas. Creio mesmo que todas as garoupas que já conheci eram sorumbáticas. No mínimo, estavam longe de ser joviais. Mais uma razão, aliás, para não estarem na disposição de vestir um par de calças turquesa. Resumindo, a frase é nova e fresca, mas sem valor. Outras frases são batidas, mas interessantes. “O Pai dos Burros”, do brasileiro Humberto Werneck, um utilíssimo dicionário de lugares-comuns e frases feitas, contém inúmeras. São expressões que se tornaram habituais e que por isso usamos sem pensar — e, no entanto, vale a pena pensar nelas. Por exemplo, na letra ‘é’, no verbete dedicado à palavra “ente”, lá está (como certamente adivinharam) “ente querido”. Os entes queridos são, de facto, os únicos entes de que se fala. É com eles que jantamos, no Natal, queremos trabalhar menos para passar mais tempo na sua companhia e falhamos compromissos porque, infelizmente, temos de ir ao funeral de um deles. Mas a designação “entes queridos” pressupõe a existência de outros entes, que prezamos menos — ou nada. Esses até são, forçosamente, em maior número. Só que, por uma razão misteriosa, nunca são referidos. Proponho que passem a ser. Com quem foste almoçar? Com alguns entes indiferentes do trabalho. Quem vai à baliza, no jogo de logo à noite? Um ente vizinho do meu cunhado.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt