Opinião

A fuga de Bashar ou o abalo de Vladimir

A fuga de Bashar ou o abalo de Vladimir

Daniela Nunes

Investigadora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica

O regime sírio caiu. O líder fugiu. Mas estas linhas não são sobre a Síria. São sobre a Rússia. Como assim?

Damasco foi tomada no passado dia 8 pelos grupos rebeldes na Síria, hostis a um governo de espécie quase dinástica, de apelido al-Assad. Como a capital, outras cidades, mais pequenas e politicamente menos significativas, foram dominadas pelos mesmos grupos rebeldes dias antes da queda do regime. Era o início do fim de meio século de poder dos al-Assad no país. Primeiro, e durante quase 30 anos, com Hafez, o pai de Bashar, e, depois, desde 2000, com este último, que protagonizou um dos períodos mais sangrentos e humanamente chocantes das últimas décadas no mundo: a guerra civil síria (2011-...).

O anúncio da implosão do regime, como do próprio país, pelo menos tal qual o conhecíamos desde há 50 anos, foi feito por um representante desta oposição de tipo terrorista através da rádio estatal. A Síria estava a arder, física e espiritualmente, e a população pedia socorro, enquanto Bashar abandonava o país num dos seus jatos privados, pelo aeroporto de Damasco – uma fuga que condiz perfeitamente com alguns dos luxos do líder, agora pelos media internacionais expostos, e de que é exemplo a sua coleção pessoal de carros de alta gama.

Por escassos dias, o paradeiro de Bashar foi desconhecido. Mas os mais atentos à política internacional desconfiaram certamente que o asilo poderia estar à distância de meros 2500 quilómetros: em Moscovo. Se foi esta a sua aposta... Acertou! Alegando “motivos humanitários”, o Kremlin concedeu asilo político ao líder sírio, bem como à família, por tempo indeterminado. É por isso que, apesar de o regime em causa ser o sírio, estas linhas destinam-se, sobretudo, a refletir acerca do que está em causa para a Rússia de Vladimir Putin com a implosão de um dos seus tentáculos além-fronteiras.

Não seria segredo que o processo de ebulição militar e social na Síria estaria a preocupar o governo russo há já algum tempo, até porque, e este é o grande abalo de Putin, a Síria é o principal lugar-pivot no mundo não-(pós)-soviético onde a Rússia exerce algum tipo de influência e poder realmente determinantes. Por largos anos (2015-...), foi Moscovo quem garantiu a sustentabilidade do governo de Bashar al-Assad, enviando milhares de soldados para território sírio com o intuito de proteger a continuidade da “dinastia”. É fácil imaginar que, porventura, terá sido essa sustentabilidade o elemento retardador do colapso do regime que acaba de ruir.

Para a Rússia, este apoio não representa uma mera fonte de altruísmo. Antes, representa (ou representava) a garantia de algum tipo de estatuto na zona do Médio Oriente. Agora, esse estatuto está, quase de certeza, em causa. A questão que se impõe é: o que acontecerá às bases militares russas tão importantes (para a Rússia) na Síria? Nesta fase, ainda não é possível dar resposta a essa pergunta.

Estas bases militares – a base naval de Tartus e a base aérea de Khmeimim – são dois dos mais relevantes pontos estratégicos para a Rússia fora do seu território, já que lhe permitem um controlo e oferecem um ponto de partida, militarmente falando, numa zona distante, problemática e onde o Kremlin tem e terá sempre interesses.

Para já, a inquietação de Moscovo passa por garantir alguma forma de estabilidade nestas bases militares. Para isso, poderá ser necessário entrar em acordo com os rebeldes, que, alegadamente, já tomaram as zonas onde se localizam estas bases. A retirada russa destas zonas seria um fracasso sem igual para a história da Rússia do século XIX, sobretudo com um autocrata como Putin aos comandos do país. Mas ela não está completamente fora de questão. Com a guerra na Ucrânia a roubar as atenções do Kremlin, Putin passa agora a ter de gerir com muita cautela o impacto da desgraça Assad, antes que a essa suceda a vitória Zelensky.

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