“Por mares nunca dantes navegados”, citando o poeta Luís de Camões, avançamos por um caminho nunca trilhado, alcançando um momento histórico na nossa democracia, em que colocamos nas mãos dos cidadãos o verdadeiro poder de decidirem o futuro da sua (nossa) cidade.
Após a aprovação da proposta de um referendo local, na Assembleia Municipal de Lisboa, sobre o Alojamento Local (AL), vivemos um momento inédito, 50 anos depois do 25 de Abril. É a primeira vez que uma iniciativa popular desencadeia um referendo desta natureza, que poderá ter um verdadeiro impacto na vida dos nossos cidadãos.
Esta é, de facto, a única ferramenta de democracia direta ao serviço da população, inscrita na Constituição Portuguesa. Há muito que defendo a utilização dos referendos locais como um elemento essencial da participação cívica e da recuperação da confiança dos cidadãos nas entidades públicas. Embora pouco utilizado em Portugal, o referendo local é frequente noutros países, onde constitui uma ferramenta comum, dotando os responsáveis políticos da informação mais completa sobre o sentir da sua comunidade – o que lhes permite tomar as decisões que melhor a servem, em particular em temas de particular importância e onde a opinião se mostra polarizada.
Na freguesia de Benfica, fomos pioneiros nesta matéria e em 2023 promovemos o primeiro e único referendo local alguma vez realizado na cidade de Lisboa, para auscultarmos a nossa comunidade sobre a expansão da operação da EMEL a novas zonas da freguesia, conquistando a adesão de mais de 9500 eleitores. Na época, ambicionei que esta iniciativa pudesse dar o mote para que outros seguissem o exemplo, fosse em Lisboa, ou mesmo noutros pontos do nosso país, servindo para aproximar os cidadãos do poder político, alimentando e revitalizando a democracia. Partindo das estruturas locais, de proximidade, e tornando possível dar uma voz ativa à população, para que as decisões deixem de ser tomadas apenas nos gabinetes, de uma forma alheada dos problemas reais das pessoas. Daqueles que depositaram em nós a confiança para trabalharmos e concretizarmos respostas adequadas às suas preocupações.
Os números dizem-nos que a taxa de participação eleitoral tem diminuído ao longo dos anos. Desde 2009, menos de 60% dos eleitores exerceram o seu direito de voto. Se nada for feito, mesmo tendo em conta a ligeira diminuição da abstenção nas últimas eleições legislativas, teremos um fosso cada vez maior entre a política e a comunidade.
Sendo o primeiro referendo local de iniciativa popular, não há histórico, não há jurisprudência, e navegamos à vista da costa, enquanto aguardamos pela luz verde do Tribunal Constitucional. Existem, por certo, muitas dúvidas neste terreno inexplorado que atravessamos, e existirão também opiniões para todos os gostos sobre a legitimidade das perguntas, o seu alcance e consequências práticas. Não obstante, possuímos uma única certeza inabalável: desta vez os cidadãos estão envolvidos, a debater temas que lhes interessam e podemos estar muito perto de fazer história na cidade de Lisboa.
Como indica o regime jurídico do referendo local, o mesmo deve incidir sobre “questões de relevante interesse local”. Em Lisboa, a questão da habitação enquadra-se perfeitamente nesta relevância, numa altura em que os preços galopantes das casas afastam as famílias dos bairros onde nasceram, perdendo-se a verdadeira essência das freguesias. Só na última década, assistimos à saída de 60 mil habitantes da capital, que enfrenta uma gentrificação ímpar e uma massificação do turismo, e em que faltam também verdadeiras medidas para impedir este êxodo populacional.
Por isso, não podemos perder tempo a debater as hipotéticas consequências deste referendo, mas devemos focar-nos no grande ato de coragem e cidadania participativa do Movimento Referendo pela Habitação.
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