Apesar do folclore noticioso, e da gritaria que vem com isso, vivemos numa democracia estabilizada que não exige em Belém um salvador da Pátria, um líder de fação, ou alguém que pense que pode ou deve mudar o regime
Se alguém tivesse dúvidas da utilidade da comemoração de ontem na Assembleia República, e tivesse assistido pela televisão como eu, por certo ficou esclarecido.
A qualidade das intervenções foi enorme. De todas as bancadas, através das suas divergências, e dos Presidente da República e da Assembleia da República.
E foi também muito interessante quem aplaudiu, quando e a que propósito, o que foi dito pelos outros.
Quem percebeu isso, saberá a razão pela qual estou contente com o que parece ser a eleição presidencial de 2026.
OS INDISCUTÍVEIS FACTOS
O happening sobre as comemorações dos 49 anos do 25 de Novembro, a que assistimos, é exemplar para se perceber a realidade portuguesa.
Comecemos por alguns factos indiscutíveis:
A Esquerda Radical e a Extrema-Esquerda nos finais de novembro de 1975 fizeram um Golpe de Estado, em que o PCP participou e de que se retirou na véspera.
Entre outras ações, na tarde de 25 de Novembro:
(i) bases aéreas (Tancos, Monte Real, Montijo e o Comando da Região Aérea, em Monsanto) foram ocupadas por paraquedistas insurretos,
(ii) o RALIS ocupou o GDACI em Monsanto, que controlava o movimento aéreo, o acesso a Lisboa pela autoestrada do Norte, o aeroporto da Portela e o Depósito Geral de Material de Guerra, em Beirolas.
(iii) a Escola Prática de Administração Militar ocupou a RTP,
(iv) o General Pinho Freire (comandante da 1ª Região Aérea e membro do Conselho da Revolução) foi detido também em Monsanto pelos golpistas e ameaçado de morte,
(v) os fuzileiros foram travados à última hora, seguramente quando o PCP recuou (com isso aproveitando para destruir rivais, sendo por eles considerado “traidor”), e não aderiram ao golpe.
Esse Golpe de Estado tentava inverter a tendência para alguma moderação após a substituição do Primeiro-Ministro (militar comunista) Coronel Vasco Gonçalves, em setembro de 1975, pelo Almirante Pinheiro de Azevedo e a substituição de Otelo por Vasco Lourenço na chefia da Região Militar de Lisboa na véspera.
A probabilidade desse golpe de Estado ocorrer e ter sucesso era considerada muito grande e por isso setores militares anticomunistas de Esquerda Moderada e de Direita estavam em estreita colaboração defensiva com forças político-partidárias civis, com posições semelhantes.
O golpe de Estado foi derrotado (o facto de Otelo ter “borregado” ajudou…), por uma estrutura protagonizada pelo General Ramalho Eanes.
Duas companhias formadas com ex-comandos com experiência de guerra (integradas na estrutura preparada para resistir ao previsto Golpe de Estado) foram decisivas para recuperar Monsanto e obter a rendição da Polícia Militar em Belém e o fim do Golpe de Estado.
A vitória sobre os golpistas só foi possível pela mobilização de apoios civis, em especial antigos comandos. E se as coisas se complicassem havia civis com experiência militar que estavam armados, mas não intervieram.
Isso foi feito com o apoio de militares moderados, de militantes do PS que tinham recebido armas de militares moderados (e do MDLP, que terá conseguido armas no mercado internacional, segundo foi afirmado anos depois pelo Comandante Alpoim Calvão, membro de Direção desse movimento político-militar presidido pelo General António Spínola, que foi o primeiro Presidente da República após o 25 de Abril de 1974).
Eanes apoiou-se no setor político-militar de Esquerda moderada revolucionária e outros mais moderados (“Grupo dos Nove”, Rocha Vieira e Loureiro dos Santos) e operacionalmente em especial nos militares Tomé Pinto, Pires Veloso (comandante da Região Militar do Norte), Aurélio Trindade, Monteiro Pereira, Gomes da Silva, Garcia dos Santos e sobretudo Jaime Neves, este último chefe dos
Comandos, além de forças militares da Região Norte, de Cavalaria mais a Sul (Estremoz e Santarém) e algumas unidades de outras armas, como uma vinda de Mafra.
No lado civil, o protagonismo foi do Partido Socialista (que depois da Manifestação da Fonte Luminosa, em 19 de junho de 1975, foi o liderante indiscutido no combate contra o PCP e a Extrema-Esquerda), com o apoio de todos os partidos moderados existentes.
A Extrema-Esquerda e o PCP também estavam armados, e pelo que se os pró-soviéticos não tivessem recuado à última hora, a probabilidade de uma guerra civil era enorme, com o País dividido ao meio.
Prevendo isso, a Força Aérea deslocou os aviões para o Norte, os líderes civis moderados (Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral) foram de Lisboa para o Porto, e os militares a Norte e muitos outros, além dos Comandos, estavam preparados para intervir a partir do Norte.
Para evitar a guerra civil foi também importante que o PCP e o Presidente Costa Gomes tivessem percebido a correlação de forças e que a Revolução não ganharia.
OUTROS FACTOS E OPINIÕES
Após esses factos indiscutidos, alguns outros que podem não o ser, além da minha opinião:
a) O resultado da derrota dos golpistas foi colocar Portugal no que fora a intenção de 25 de Abril: uma revolução para trazer a Liberdade e a Democracia, cabendo depois ao povo português
decidir as soluções políticas, económicas e sociais através do seu voto;
b) A Revolução tinha descarrilado e o caminho era no Outono de 75 o de um voluntarismo muito radical para se chegar a uma sociedade de modelo soviético.
Para isso – e sem base eleitoral nem popular - os militares aliados a forças radicais civis de Esquerda implementaram sobretudo a partir do Outono de 1974 uma Revolução Social e Económica (sustentada na nacionalização sem compensação de 1300 empresas correspondendo a 30% do PIB, além de ocupações de praticamente todas as propriedades agrícolas de dimensão a Sul do Tejo), apesar de contra isso terem votado mais de 70% dos portugueses quando em abril de 1975 finalmente tiveram essa oportunidade.
Na Eleição da Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975 tinham votado 91,66% dos portugueses e os partidos próximos ou participantes no Golpe de Estado tiveram 19,57% e os que se lhe opuseram 71,87%.
Apesar disso, devido ao chamado “Pacto MFA-Partidos” (que os moderados aceitaram por ser a condição para que essa eleição tivesse lugar), o resultado eleitoral não teve nenhum reflexo na formação do governo. O PS e o PSD (64,26% do voto) saíram aliás em julho do Governo onde eram ultraminoritários.
Sem a derrota dos golpistas no 25 de Novembro era muito improvável que a Constituição de 1976 fosse aprovada como norma garante da Liberdade e do Pluralismo democrático.
Mesmo assim, o setor mais radical do Grupo dos Nove (Charais, Pezarat, Vasco Lourenço, Melo Antunes) e o Presidente Costa Gomes impuseram o “2º Pacto MFA-Partidos”, assinado em 26/2/76, que mantinha uma tutela militar sobre a Democracia prevista até 1982.
Essa tutela criou um regime de “democracia controlada e limitada”, através da constitucionalização do Conselho da Revolução que dirigia com total autonomia as Forças Armadas e escolhia os membros da Comissão Constitucional (que fazia o papel de Tribunal Constitucional).
Isso foi aceite pelos partidos democráticos para assegurar as eleições de 1976, sendo que só em 1982 por uma revisão constitucional, o Poder Militar se submeteu ao Poder Político, atingindo-se o estádio de Democracia Plena.
Ou seja, sem se repor o regime político nos carris da sua inspiração inicial, o 25 de Abril acabaria por ser o começo de um regime autocrático, na melhor das hipóteses uma Ditocracia em que o Poder Militar (como acontece na Rússia, na China, no Irão e na Venezuela) decidiria quem se pode candidatar e na pior das hipóteses uma Ditadura de inspiração comunista.
Ou, então, perante a repulsa da esmagadora maioria dos portugueses, o pragmatismo da União Soviética, a reação das democracias liberais, talvez as forças liberais vencessem uma guerra civil que a generalidade dos “players” – incluindo muitos socialistas – achavam infelizmente muitíssimo provável
É nesse sentido que sempre achei desde então que não podia haver a vitória do 25 de Novembro sem antes ter havido o 25 de Abril (que retomou), nem haveria 25 de Abril democrático e liberal sem a derrota dos golpistas de 25 de Novembro.
AS LEITURAS E OS ASSOBIOS 49 ANOS DEPOIS
Voando agora para 2024, percebe-se perfeitamente que o BE, o PCP, o Livre e as forças políticas hoje ultraminoritárias que por ali gravitam se oponham a comemorar esta data: eles ou os seus pais políticos foram derrotados. E, honra lhe seja, Joana Mortágua falou como falaria há 49 anos, sem ter querido aprender nada desde então.
Percebe-se perfeitamente que o PSD, o CDS e a IL queiram comemorar: eles ou os seus pais políticos foram vencedores e o resultado foi a democracia liberal que sempre defenderam.
O CHEGA afirma de forma inequívoca a sua adesão a esta leitura do 25 de Novembro, o que deveria ser saudado por todos os democratas liberais: é verdade que Ventura juntou ontem outros condimentos, e se votantes deste partido ou seus antecessores incluem pessoas que sempre tiveram essa posição, também junta outros que queriam que como resultado da derrota dos golpistas fosse proibido o PCP, apesar de ser historicamente indiscutível que este partido recuou e não participou no golpe.
O PS tinha mais legitimidade do que os outros partidos para afirmar a liderança civil da luta contra os golpistas e para manter essa leitura – aliás correta historicamente - com a qual aliás eu estou de acordo, agora como há 49 anos. E, perante o inevitável, Pedro Delgado Alves, finalmente veio dizê-lo.
No entanto eu compreendo que o atual PS tenha optado por tentar deitar pela porta fora essa parte da sua memória histórica, embora lamente que assim seja.
Realmente:
a) Parte significativa dos seus quadros políticos que estavam do outro lado da barricada no tempo do golpe foram depois aderindo ao PS e à democracia liberal, mas não querem – compreensivelmente – fazer mea culpa;
b) A extrema-esquerda e a esquerda radical (então revolucionárias) em 1975-6 representavam 19% (e nas presidenciais de 1976 votaram em Otelo e no comunista soviético Octávio Pato 24%) e este ano são apenas 10,69%, pelo que muitos dos seus herdeiros são hoje votantes do PS sem mudarem o essencial do posicionamento;
c) Hoje em dia para alguém com ambição política de Esquerda radical só faz sentido aderir ao PS se quiser fazer mais do que protestar;
d) Por isso para uma grande parte dos militantes do PS (de que PNS está a tentar afastar-se para sobreviver) a fonteira civilizacional e cultural que estava à sua Esquerda (e por isso o PS era declaradamente anticomunista em 1975) está agora à sua Direita, incluindo o PSD.
O PS institucional tenta assobiar para o lado, pois entende que não tem nada a ganhar em manter essa parte da sua História em evidência e setores socialistas amplos consideram aliás que o anticomunismo e antitotalitarismo era já nessa altura um erro, como pensavam os anti-“soaristas”.
A política tem horror ao vazio. O medo do PS permitiu a apropriação por outros. Disso só o Partido de Mário Soares se pode culpar.
PRESIDENCIAIS: TERRITÓRIO DE MODERADOS
Poderá surpreender muitos que o diga, mas penso que tudo o que tratei atrás é importante para se perceber a corrida da eleição presidencial, que acaba de arrancar com o Almirante Gouveia e Melo (à Direita) e o Dr. António José Seguro (à Esquerda) a fazerem exercícios de aquecimento.
E isso por duas razões:
a) Todos os candidatos putativos com hipóteses são moderados (esses dois, mais António Vitorino, Luis Marques Mendes, Mário Centeno, Pedro Passos Coelho);
b) Nenhum tem nada a ver com os derrotados do 25 de Novembro e com os que queriam ainda depois disso manter uma tutela militar sobre o regime democrático;
c) Todos consideram o PS (ou o PSD, CDS e IL, consoante o caso) como adversário, mas com quem partilham uma cultura política, e não como inimigos separados por um “muro de Berlim” ou “linha vermelha intransponível;
Ou seja, podemos afirmar que apesar do folclore noticioso, e da gritaria que vem com isso, vivemos numa democracia estabilizada que não exige em Belém um salvador da Pátria, um líder de fação, ou alguém que pense que pode ou deve mudar o regime.
Como se perceberá daqui a minutos, eu até já poderia dizer quem preferiria que se candidatasse e que ganhasse. E sobre isso tenho até opiniões.
Não o vou fazer, em todo o caso. Pelo menos nos tempos mais próximos. Mas quero saudar a hipótese de Vitorino (que com o seu sentido de humor não apalhaçado poderia fazer bem a transição do consulado marcelista…) e de Seguro (um homem decente e personificação da moderação) poderem ser candidatos.
O ELOGIO
Hoje é um agradecimento, mas também um elogio. No final do ano acabam – por minha exclusiva opção – “As Causas”. A única razão é fadiga e diminuição do prazer em as fazer.
O elogio/agradecimento é para Ricardo Costa e Bernardo Ferrão (que há 6 anos me convidaram e nunca me limitaram no que quis
dizer) e para todos os jornalistas que me acompanharam ou que na retaguarda me ajudam a preparar o programa como produtores, que personifico na Gabriela Neto.
Se me permitem, realço acima de tudo a Clara de Sousa. Parafraseando um célebre anúncio, “podia ter sido feito sem ela? Podia, mas não era a mesma coisa”.
Finalmente, agradeço a todos aí em casa pela vossa paciência e em especial aos muitos milhares que me foram dando ânimo, ideias, apoiando e elogiando. E também aos que me criticaram, algumas vezes com excesso, mas sempre contribuindo – querendo ou não – para eu fazer melhor.
LER É O MELHOR REMÉDIO
Dois livros incontornáveis para quem queira perceber os 50 anos seguintes ao 25 de abril:
a) “Ramalho Eanes – Palavra que Conta” (Porto Editora), longa entrevista de Fátima Campos Ferreira a Eanes;
b) “Eu Estive Lá” (D. Quixote), de Maria João Avillez, 16 entrevistas sobre 16 períodos desde o fim do regime anterior aos 8 anos de Governo de António Costa (registo de interesses, fui um dos entrevistados para falar sobre o “Socratismo”).
Além de tudo o resto, que é muito, sobre o 25 de novembro convém ler o que o General Tomé Pinto disse a Maria João Avillez e o General Eanes a Fátima Campos Ferreira.
A PERGUNTA SEM RESPOSTA
Li no Observador e não queria acreditar, mas o silêncio absoluto de Catarina Martins e do BE convenceu-me de que era verdade.
Ela era líder do BE, e após a grande derrota nas legislativas de 2022 veio a demitir-se, saiu da Assembleia e ficou sem emprego. Mas a sua sucessora, Mariana Mortágua, no dia seguinte deu-lhe emprego no BE, um partido que, entretanto, despedira muitos colaboradores devido à redução do que os nossos impostos pagam para os partidos.
Nada foi revelado por ela, que pelo contrário afirmou na altura que “há uma série de projetos que tinha deixado em pausa e que vou retomar agora e há novos projetos que me estão a entusiasmar muito”.
As perguntas são: não seria correto ter revelado a verdade à Cidadania e aos que tinham sido despedidos? Qual é a opinião do Frei Tomás (“faz o que ele diz e não o que ele faz”)? E qual a razão para nenhum outro órgão de comunicação ter achado que isto era notícia?
A LOUCURA MANSA
André Ventura, discursando numa manifestação contra a imigração ilegal, afirmou (sem se rir, pareceu-me) que os imigrantes “não podem comer nem gatos, nem cães”.
Eu sei que ele tem um gato, mas também não me pareceu estar apavorado.
A única explicação é, pois, a vontade de copiar Trump. Espero que a seguir pinte o cabelo de cor de laranja…