Opinião

Trump: “o candidato dourado”?

Trump: “o candidato dourado”?

Miguel da Câmara Machado

Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

A lembrar uma estatueta em noite de óscares, num discurso de agradecimentos com música a fechar, mas que incluiu sogras e foguetões pelo ar, blindado e brilhante como um tanque de guerra, o 45.º Presidente dos EUA recuperou a Casa Branca e deu uma vitória histórica ao partido republicano, passando a 47.º, com um Capitólio mais encarnado do que Nixon ou Reagan conseguiram ter, e uma passadeira vermelha para aprovar ou nomear quem quiser. Começou a “Golden Age of America”?

“Remember, remember, the fifth of November!” A frase que, do outro lado do Atlântico, ainda hoje serve para os ingleses lembrarem a revolução falhada de 1605, em que Guy Fawkes foi detido a guardar explosivos que iriam rebentar com o parlamento britânico, ficará gravada na memória dos americanos e de tantos que acompanharam a noite eleitoral que mudou o presidente e também o parlamento dos EUA, a 5 de novembro de 2024 (que começou com um grupo de portugueses a surpreenderem ingleses no Estádio de Alvalade, noite também memorável, mas em tons mais nacionais de verde e branco).

Surpresa maior (ou talvez não) foi a vitória de Donald J. Trump que se foi consolidando enquanto eram divulgados os resultados e os sinais se tornavam evidentes: (i) a vitória na Flórida foi ainda maior do que se esperava; (ii) os republicanos não contestaram ou impugnaram resultados e as eleições foram decorrendo pacificamente; (iii) a Carolina do Norte e a Geórgia foram os primeiros dos sete “swing states” a dançar a seu favor, com força; (iv) e todos os outros cinco se foram inclinando para Trump enquanto fomos conhecendo mais resultados. Mais: o Senado “virou” e a maioria nessa Câmara, que passará a ser presidida por J.D. Vance, é forte e clara e a maioria na Câmara dos Representantes deverá sair reforçada. Mesmo conquistando 49 estados, nem Nixon, nos anos 70, nem Reagan, nos 80, tiveram um Capitólio tão brilhante a seu favor. E Nixon tinha uma maioria de juízes nomeados por republicanos (7-2) no Supremo Tribunal, 4 nomeados por ele, mas isso não o protegeu de ser obrigado a entregar as gravações de Watergate que o fizeram perder o cargo, numa das melhores manifestações de controlo de poderes – “freios e contrapesos” – da História dos EUA.

Não sabemos qual será o equilíbrio na nova América, mas esta acordou, da Pensilvânia ao Wisconsin (que serviram para chegar à vitória, perto das 6 da manhã, já óbvia), do Michigan ao Nevada, do Arizona ao Alasca (que sempre seria republicano) com um novo Presidente, razão pela qual, depois de se conhecerem os resultados em Filadélfia, berço da nação e capital da Pensilvânia, Trump já sabia que tinha atingido o “número mágico” de 270 “grandes eleitores” e veio fazer o seu discurso de vitória.

O Presidente-Eleito começou por anunciar que “esta vai ser verdadeiramente a era dourada da América”, depois alongou-se em agradecimentos aos familiares e membros do seu staff e fez referências que são quase surreais para quem está habituado a seguir discursos políticos. Entusiasmou-se a elogiar a descolagem de um foguetão de Elon Musk (mas longe dos tempos em que JFK nos prometia ir à lua), chamou companheiros ao microfone, e tentou, à sua maneira, dizer que ia governar para todos os americanos. Podia ter sido um discurso muito melhor. Podia ter sido muito pior. Não houve ameaças de vingança, não houve menorização dos adversários, não houve parte do que, por vezes, é feito com ele… desde que desceu aquelas escadas, também douradas, da Trump Tower, em 2015, não subestimou os rivais (nem Kamala, nem Biden, nem H. Clinton).

Contra o que já li por aqui, estou verdadeiramente convencido de que Kamala Harris não perdeu por ser mulher. E, na reação a quente, gostaria de tentar explicar porquê. “Reação a quente” que a própria candidata não teve, quando já era evidente que tinha perdido, depois de ter prometido um discurso a milhares de apoiantes que a aguardavam numa Universidade cheiinha de jovens esperançosos.

Quando Trump não fez um discurso de derrota, os seus oponentes foram rápidos a criticar este comportamento. Ao contrário dos republicanos George H. Bush (em 1992), Bob Dole (em 1996) John McCain (em 2008) e Mitt Romney (em 2012), todos os candidatos democratas, desde o centenário Presidente Carter, fugiram ao discurso de derrota. Al Gore mandou a sua limusine inverter a marcha em 2000, Hillary adiou o discurso em 2016 e, até à hora em que escrevo, Harris ainda não apareceu.

Kamala não aparecer pode ser uma das melhores (não) imagens desta campanha (e do seu percurso presidencial). E posso dizer isto porque a acompanho, com esperança, desde que se candidatou em 2019, nas primárias democratas. No entanto, aí começou uma campanha desastrosa, liderada pela irmã, com posições contraditórias e nem conseguiu chegar a janeiro e às primeiras votações. “Perdeu” antes de enfrentar os candidatos de 2020, como os mais “progressistas” Elizabeth Warren ou Bernie Sanders, ou os mais “moderados” Pete Buttigieg, Amy Klobuchar, Michael Bloomberg e… Joe Biden.

Todos estes foram testados, ganharam e perderam eleições por todo o país e não foram elevados a candidato presidencial com um tweet de despedida de um presidente velhinho e doente com COVID.

Em 2020, Joe Biden podia ter escolhido muitos outros parceiros para vice-presidente. A minha preferida era Stacy Abrams, que foi presidente da Câmara dos Representantes da Geórgia e, em campanha, mesmo não sendo candidata, lhe “deu” esse “swing state” há 4 anos. Este ano, teria tido, na minha perspetiva, um caminho para a vitória que começava logo por mudar os resultados com que a noite começou. No entanto, o partido democrata tem outros nomes muito bons e carismáticos, como Cory Booker ou Julián Castro que também desistiram antes de 2020, mais por poupança de fundos e para se concentrarem nas suas campanhas ou no apoio a Biden (de que também podiam ter sido VPs).

A política é feita de “slogans” e marcas, é feita de carisma e de mobilização. “Yes, we can!” ou “Make America Great Again” são bons exemplos. A frase que mais podemos associar a Kamala, nesta eleição, é a resposta-padrão que usou para centenas de perguntas “eu cresci, com a minha mãe, que era de classe média” (e quero compreender os problemas). É fácil vir dizer que era previsível, mas eu apostei com vários amigos e fui apontando estes traços de campanha… Joe Biden, em 2020, criou empatia com os americanos descontentes com um governo desorganizado e pandémico e é, desde que ficou um jovem viúvo com dois filhos órfãos, um “namoradinho” da América, que entra em blocos republicanos (daí ter sido escolhido por Obama em 2008).

Kamala deu apenas uma entrevista à FOX e não se expôs, andou em comícios planeados ao pormenor, rodeada de vedetas e celebridades, falou mais de temas “woke” que de classes e não arriscou na escolha de um VP que lhe pudesse fazer sombra, como o Governador Shapiro, da Pensilvânia, que teria feito uma campanha encantadora, como as que faz no seu Estado, e teria trazido algo de diferente. O programa Saturday Night Live, nas vésperas da campanha, fez um sketch muito ilustrativo: convidaram Tim Kaine (o candidato a VP de Hillary) para estar lado a lado com uma fotografia de Tim Walz (o candidato VP de Kamala) e, em 2 eleições “históricas e decisivas”, eram “iguais”. Procurem no YouTube!

Trump inventou várias personagens, mas a que criou, em 2015, ao prometer um muro para proteger a América, veio quebrar o partido republicano por dentro. Adotou um discurso isolacionista que Obama já tinha tido, de certa forma (“não somos o polícia, nem responsáveis pelo mundo”) e fez dos debates reality shows. A eleição de 2016 tinha tudo para ser vencida por Marco Rubio, um carismático senador da Flórida; ou por Jeb Bush, o filho “inteligente” de Bush Sr., cheio de apoios e financiadores; ou por Ted Cruz, que dominava uma fação mais conservadora do partido. Todos subestimaram e todos foram dizimados por Donald Trump.

Depois de vencer as primárias, ninguém acreditava que Hillary Clinton (que vinha preparando a sua campanha desde o fim do mandato do marido, tendo sido surpreendida por Obama em 2008) pudesse perder a eleição para aquele homem “cor-de-laranja”, da televisão, que dizia barbaridades.

No entanto, na noite de 8 de novembro de 2016, também começámos a ver os swing states, um por um, dançarem a favor de Trump e fazer com que este obtivesse uma vitória no Colégio Eleitoral, mas não no voto popular, como aconteceu em 2024, eleição em que Trump já segue com mais de 5 milhões de votos do que Kamala (que já deve amaldiçoar o 1 milhão de votos que lhe atirou quando afirmou “You were fired”, no único debate presidencial em que se enfrentaram).

E em 2017 começou uma presidência atribulada, mas que deixou algumas boas memórias nos americanos. A instabilidade e imprevisibilidade do “Presidente dos tweets” deixou aliados e rivais sem saber o que esperar. Não começaram guerras na Bósnia ou no Kosovo, como com Bill Clinton, nem no Iraque ou Afeganistão, como com W. Bush, nem na Síria ou no Líbano, como com Obama, nem por todo o mundo, como com Biden. O equilíbrio estranho com a Rússia não resultou em novas invasões, a Coreia do Norte parou os testes nucleares e a China conteve-se. Para quem segue só a paz, esse registo é importante. A pandemia foi enfrentada com discurso tonto, mas apoiou as farmacêuticas que fizeram vacinas em tempo recorde e apoiou os americanos, sem entrar num período de inflação que associam à nova presidência Biden-Harris que dá más memórias económicas aos americanos. Perdeu em 2020, mas começou, aí, a percorrer a estrada de tijolos dourados que o faria Feiticeiro da Oz Americana de novo, em 2024.

O Politico dizia que uma vitória de Trump podia ser um alerta e um despertador para a Europa, que precisa de ser reaproximada, e, como o Presidente dos EUA avisava, no 1.º mandato, devia investir na sua defesa e autonomia energética (e criticava ex-governantes alemães que passaram para empresas russas ou outros casos que por vezes esquecemos, mais dependentes da Rússia ou China). A crise de 2022 que ainda hoje sentimos pode ter efeitos a médio e longo prazo que reforçarão a União Europeia que tem manifestado sintomas de império decadente, a desfazer-se por dentro e em burocracias e o choque de uma vitória Trump pode reunificar Estados-Membros que não têm andado aliados.

Donald Trump adora a cor dourada, é a cor dos cortinados que escolhe para a sua sala oval, é aquela com que pinta o seu cabelo e ontem, enquanto ouvia o seu discurso, depois da sua comitiva entrar na sala, cinematograficamente, ao som de um “I’m proud to be na American, where at least I know I’m free…”, não deixei de me lembrar das noites de óscares e ver ali um homem, dourado, mas blindado, que aguentou dois atentados durante esta campanha, processos judiciais, e está longe daquilo com que tantos, tantos, se identificarão (mesmo aqueles que votaram nele), mas, mesmo velho (não é assim tão mais novo do que Biden), tem energia e ânimo e inventa ações de campanha fora da caixa.

E sorrir a ouvir Boris Johnson elogiar, ao início da noite, a beleza de uma democracia em que não sabemos quem vai ganhar e há centenas de pessoas, à noite, depois do trabalho, em filas para ir votar.

Haverá tempo para antecipar esta administração e até para revisitar os erros dos democratas (alguém dizia, com graça, que é tempo é de “Make The Democrats Great Again”), mas este Trump começou a planear o regresso à Casa Branca em 2020, quando a perdeu, e, aparentemente, fez tudo bem, tendo as cinquenta estrelinhas das bandeiras dos Estados Unidos a darem alguma sorte, com uma campanha desastrada do outro lado. Vamos ver como é que, hoje, cada partido começa a preparar 2028.

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