O que não cessa de espantar — o espanto infantil por determinados factos
Vou falar de algo que não cessa de me espantar. Mas antes, uma reclamação. Escreveu-me um amigo de longa data. Aqui vai, que concordo que o assunto é ainda relevante. “Caro Rodrigo, meu querido Guedes, como vai isso? Saudades grandes. Não quero chatear, mas li a tua última crónica no Expresso, aquela das causas, e de como tanta gente se torna o pior embaixador de sua bem-intencionada demanda. Tu sabes. Falámos muito disto. Antigamente chamava-se incoerência, palavra mais rápida e abrangente. Gostei de imaginar o ‘perro libre’ a destruir as toalhas de praia. E do tipo que gasta um rio a lavar duas virilhas e dos miúdos que sem hesitação deixam invólucros no chão público. Mas gostaria, se tiveres oportunidade, que quando voltares ao assunto incluas bicicletas e trotinetas. Faz-me esse favor. É uma coisa por demais. É o exemplo mais acabado de uma boa causa mal executada. Como posso ser atraído para o verde pedalar da economia de combustível zero quando todos os dias vejo barbaridades de desrespeito perigoso? Antes de mais, nunca se decidem se vão pelo passeio ou pela estrada, é como lhes der jeito no momento. E no topo da louca incivilidade, caro Guedes, e como bem sabes, os semáforos. Os semáforos, meu bom amigo. O que fazem nos semáforos é de erguer as mãos aos céus. Eu não entendo como não dás todos os dias notícia de mortes escabrosas em acidentes cretinos. Para as bicicletas e trotinetas os semáforos não existem. Não estão lá. Ou julgam que são decoração de Natal. O vermelho do semáforo não é lei, nem tão-pouco sugestão para travar, parar e esperar. Nunca podem esperar. São modernos, têm pressa. Até casais de turistas nas trotinetas. Hoje toda a gente tem pressa. No caso dos ciclistas mais artilhados, calculo que passam o vermelho porque estão atrasados para a etapa da Volta a França. Há tempos vi um camião travar a fundo, uma carrinha de escola balançar quase ao despiste, dois carros que, na aflição de não esmagar o ciclista que surgiu do nada, se desviaram na mesma direção e bateram de frente. E quando nos aparecem em contramão? Claro que, se falares disto, alguém há de reclamar porque estás a generalizar, que não se comportam todos assim. O que é óbvio. Mas existem os suficientes para sabermos que mais depressa se aplica a quantidade ‘muitos’ do que ‘alguns’. Negar isto é negar as evidências do quotidiano das principais cidades. Repara: queríamos olhar para as bicicletas e suspirar, sorridentes, olha aqui está uma bela opção, civilizada, respeitadora, preocupada com os outros, que maravilhoso vislumbre de futuro. E não estes nervos incessantes assim que os vejo pelo retrovisor, a tentar calcular quantas transgressões potencialmente fatais vão executar dentro de segundos. Bom, vai longa a irritação. Se calhar, não vais voltar a estes assuntos. Grande abraço, e liga quando vierem cá acima ao Norte, vamos aí jantar a um sítio catita. António M.L.” Abraço, António, até breve.
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