Opinião

A receita de Draghi para o mercado farmacêutico

A receita de Draghi para o mercado farmacêutico

Marta Temido

Eurodeputada

Enquanto o mercado farmacêutico global evolui, a UE perde terreno em áreas de vanguarda como medicamentos biológicos e órfãos, para não falar de novas terapias. As razões para esta perda de competitividade são semelhantes às que Draghi identifica noutros setores: investimento público fragmentado e insuficiente em I&D, pouco apoio ao investimento privado e um quadro regulatório demasiado complexo

Mário Draghi fez o diagnóstico. O mercado europeu enfrenta défices de competitividade e baixos níveis de produtividade, agravados num contexto de abrandamento do comércio mundial, de fratura geopolítica e de aceleração tecnológica, que colocam o futuro da União Europeia (UE) em risco de vida.

A receita também foi prescrita. A UE precisa de investir, anualmente, pelo menos mais 750 mil milhões de euros. Um valor sem precedentes, nem sequer no Plano Marshall. Esse investimento deve focar-se em setores inovadores, para evitar que a UE fique atrás de outros blocos económicos: inovação e tecnologia de vanguarda; descarbonização e independência de recursos; e, segurança e autonomia estratégica. E deve ser sustentado pela emissão regular de dívida comum, como feito no programa NextGenerationEU que financia o PRR, sugerindo-se ainda a emissão de ativos seguros comuns para financiar projetos de investimento conjuntos.

Investimento estratégico e dívida comum. Uma receita há muito defendida pelos socialistas portugueses, para o país e para a UE, com conhecidas resistências. Talvez este relatório as vença.

Apesar da receita ambiciosa para melhorar a produtividade europeia, o relatório Draghi parece desconsiderar aspetos importantes para a posologia. Desvaloriza a dimensão social da economia, estando praticamente ausentes, por exemplo, a negociação coletiva, indispensável para a melhoria progressiva das condições laborais, e a integração de imigrantes no mercado de trabalho, crítica para enfrentar os desafios do envelhecimento demográfico. Insiste na necessidade de desregulação europeia, o que pode ter o efeito contraproducente de fragmentação nacional, contrariando outra ideia central do próprio relatório, de reforço do mercado único, e esquece que a regulação existe para compensar as falhas de mercado.

Mas a receita do relatório apresentado na semana passada ao Parlamento Europeu tem ainda a virtude de tratar 10 áreas setoriais com potencial para se tornarem o motor de uma economia europeia de futuro mais competitiva. Entre elas está a indústria farmacêutica.

A inclusão da indústria farmacêutica nos setores a dinamizar sublinha bem a ideia de que a saúde não se limita à prestação de cuidados ou à saúde pública mas é também um setor económico vital. Aliás, o mercado farmacêutico global ocupa a 4.ª posição em vendas líquidas e a 3.ª em termos de lucros, com o mercado europeu a contribuir para 5% do valor acrescentado total gerado por esta indústria, empregando, diretamente, mais de 900 mil pessoas, além de gerar emprego indireto, trabalho altamente qualificado e bem remunerado. E não podemos esquecer a relevância geoestratégica que este setor demonstrou na crise da covid-19, nem o facto de se tratar de área em que o envolvimento demográfico gera uma procura crescente.

No entanto, Draghi alerta para que a competitividade europeia no setor farmacêutico está em declínio. Em 2022, do top-10 de vendas de medicamentos biológicos na União Europeia apenas dois eram comercializados por empresas europeias, enquanto seis eram de empresas dos Estados Unidos da América. No mercado de medicamentos órfãos, a situação é ainda mais alarmante, não figurando nenhuma empresa europeia nos principais vendedores. Este cenário revela que, enquanto o mercado farmacêutico global evolui, a União Europeia perde terreno em áreas de vanguarda como medicamentos biológicos e órfãos, para não falar de novas terapias.

As razões para esta perda de competitividade são semelhantes às que Draghi identifica noutros setores: investimento público fragmentado e insuficiente em I&D, pouco apoio ao investimento privado e um quadro regulatório demasiado complexo. Apesar de, neste mercado, a UE manter uma balança comercial favorável com os Estados Unidos e de estar ao mesmo nível no registo de patentes, estes obstáculos dificultam a sua liderança. Mas o risco é maior do que esse porque daqui pode resultar impacto no acesso dos cidadãos europeus à inovação terapêutica, que é vital para os resultados de saúde que tanto valorizamos.

Entre outras propostas concretas para este setor, Draghi avança a adoção de um quadro simplificado para ensaios clínicos multinacionais, tornando a UE mais atrativa para I&D. Por outro lado, apela à implementação completa do Regulamento de Avaliação de Tecnologias de Saúde, com alocação de recursos adequados para garantir avaliações conjuntas até 2025, bem como do Espaço Europeu de Dados em Saúde. Defende a aceleração do acesso de medicamentos ao mercado, através da coordenação entre os reguladores nacionais, agencias de avaliação de tecnologias e financiadores. E sublinha, ainda, a necessidade de aumentar o investimento público e privado em I&D e de fortalecer as parcerias internacionais da UE no setor farmacêutico.

Estas recomendações são decisivas e Portugal é um bom exemplo da sua necessidade de implementação. Mas há outras áreas que precisam de atenção especial, como a transparência na formação de preços dos medicamentos e o incentivo a inovações que abordem necessidades farmacológicas não satisfeitas.

O Relatório Draghi constitui, portanto, não só uma oportunidade para a UE se reafirmar na economia global, mas também para garantir a saúde e o bem-estar dos seus cidadãos, abrindo caminho para um crescimento económico alinhado com maior justiça social e com olhos postos na sustentabilidade e nas tecnologias do futuro. Compete a todos os responsáveis políticos estar à altura do desafio.

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