Fernando Pessoa escreve em Abril de 1928, pela pena de Álvaro Campos, que “Depois de amanhã, sim, só de pois de amanhã... / Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, / E assim será possível; mas hoje não... / Não, hoje nada; hoje não posso”, aqui desenhando bem a prática recorrente do nosso endémico cisma dos adiamentos. Todos somos cúmplices nestes adiamentos. Mudar dá trabalho, de facto, e traz riscos.
E traz inovação – com uma marca política.
Em setenta anos tivemos quatro momentos em que se tentou mudar as coisas, para convergir com a Europa: 1. Na década de 1960, em que o Estado mal piscou o olho aos cineastas que quiseram e fizeram cinema, mas que por aí ficou; 2. Na década de 1970, quando a Gulbenkian assume e reforça o seu apoio ao Cinema dos cineastas, acção conjunta que cria o lastro que nos transportou pela Revolução até aos anos de 1980; 3. Em 2004, quando José Manuel Amaral Lopes, com o ministro Pedro Roseta, desenham a adaptação de uma Lei do Cinema para Portugal; 4. Quando em 2023 Pedro Adão e Silva inicia uma reforma estrutural na Cultura, inclusivamente chamando o Orçamento do Estado a responder à riqueza gerada pelo Cinema e Audiovisual – mesmo que só pela via do reembolso parcial de despesas para as produções nacionais e estrangeiras no País, Cash Refund e o Cash Rebate então reforçado.
Em 60 anos é muito pouco, mais anda quando dois destes quatro momentos se deveram aos cineastas e à Gulbenkian, e só dois deles ao Estado.
O Estado tem a obrigação de abandonar a percepção conservadoríssima que tem tido sobre a criação, produção e fruição artísticas. O Estado tem de despertar para a evidência de que as Artes, industriais e solitárias, são o oxigénio humanista de uma sociedade pujante, irrequieta. Incómoda, mas mais reflexiva também, disponível.
Até hoje temos vivido sob a égide dos “sim, até concordo..., mas agora não é oportuno” em que os poderes políticos se têm refugiado. Isso inibe-nos de concretizar e armadilha o percurso de todos os criadores, em que só os convictos logram prosseguir e, por vezes, obter o meritório reconhecimento internacional, em todas as áreas da criação.
No caso do Cinema, e sem querer desanimar quem me lê, antes chocar, as consequências deste nosso “Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã” exprime-se também, explícita e ruidosamente, nos resultados de bilheteira. Em 2014 tivemos em Portugal 12,1 milhões de espectadores em sala de cinema. Em 2023, nove anos depois, foram 12,3. Em França, no passado ano, foram 180,76 milhões. Mesmo tendo em conta uma aritmética simplista sobre o diferencial de habitantes – deveríamos ter cerca de 26 milhões -, a disparidade mantém-se e patenteia os resultados da divergência de procedimentos de Portugal com a Europa. Sem que esqueçamos o exemplo notável do Reino Unido, que em lugar de se deixar anular pelo poder do Cinema dos EUA antes conjugou a indústria com a matriz britânica, o que nos faz distinguir tons, densidades e forma distintas das dos EUA.
A solução para que se abandone esta nossa abstração portuguesa existe, é política e deve ser uma adaptação do que melhor resultou na Europa. No caso do Cinema e Audiovisual, não pode, no entanto, tornar-se um projecto assustador, e provavelmente iníquo, que será abatido nos corredores das influências e do desconhecimento, mesmo antes do tiro de partida.
Consolidar e reforçar o Cash Rebate, distinto do Cash Refund; extinguir o sistema de júris no ICA, substituindo-o por uma avalização técnica de coerência e viabilização orçamental dos projectos propostos – excepto para as primeiras obras, em que os jurados têm de obrigatoriamente de ter competências, em lugar de um conhecimento discutível; criar contratos plurianuais com os produtores, na linha do Teatro – novamente avaliação técnica e não subjectiva; concretizar a rede de exibição nacional de exibição, com uma programação lúcida – apelativa, diversa, para o público potencial e criação de públicos com novas capacidades de leitura; reforço do apoio à Produção – a título de investimento, comprovado.
No Orçamento do Estado, que agora se discute, o custo destas medidas não será mais do que dificilmente perceptível. Mas será, como tem sido, muito perceptível na receita, retorno económico e oxigenação da sociedade. Ou seja, a receita é muito superior à despesa.
Mas perante as entropias continuadas, a reforma terá de ser lógica e de bom-senso, a bisturi firme, progressiva e, essencialmente, conhecedora, lúcida.
Para um amanhã melhor do que o extenso ontem, deixado sempre para... “Só depois de amanhã”.