Opinião

A lição da máquina democrata

A lição da máquina democrata

Gonçalo Ribeiro Telles

Comentador político, fundador e consultor de comunicação na GRiT Communication & Political Risk

Esta nova estratégia do partido democrata deveria ser retida por todos os líderes europeus e nacionais do espaço democrático hoje. Não se combate este fenómeno extremado, sobretudo com todos os alicerces que têm ao seu dispor hoje, com falinhas mansas

Qualquer que seja o desfecho do ato eleitoral do dia 4 de novembro, já ninguém consegue desmentir que a desistência de Joe Biden e a aposta noutra candidatura com a aura de Kamala Harris não tenha sido a jogada acertada do partido democrata americano. A convenção dos últimos dias cimentou de vez esta realidade, mas mesmo isso se tornou evidente muito antes.


Não tirar algumas ilações a partir daqui e outras para lá daí, seria um erro que não estou disposto a correr. Para o bem e para o mal, a nação indispensável vive de um reflexo e influência como nenhuma outra no mundo.

Vamos então ao que julgo ser o mais importante a reter ao momento:

Nunca subestimar a máquina:

Há um mês e meio, este partido que agora se apresenta inequivocamente como a força motora de uma certa e inegável alegria, normalidade, decência e da energia democrata com reflexo no mundo, estava desesperado e condenado por tantos nesta Europa. Em tempo recorde, arriscou, uniu, inspirou e soube dar uma saída digna a um presidente que fez um excelente mandato, mas que teimava em tomar a decisão que os mais perspicazes tanto pediram desde o debate decisivo.

Sim, esteve aqui o melhor do pragmatismo em perceber desde logo que esta é uma das eleições mais relevantes da história americana. Sem a máquina do partido, nada disto seria possível. E como se acabou por conseguir que Joe Biden saísse? O meu segundo ponto procura responder a isso mesmo.

As elites dos democratas, tão criticadas outrora, são em parte as grandes responsáveis pela nova vida do partido. Aceitem-no.


Não foi só a luz evidente na convenção através dos seus discursos. Essencialmente, sem os Obama’s, mas também sem os Clinton’s, Pelosi e a esfera de alguns doadores de peso, o presidente americano manter-se ia muito provavelmente como o candidato e hoje falar-se ia de uma campanha depressiva, sem energia e da vitória incontornável de Trump em novembro.

O que mais impressiona a partir daqui é a forma como as elites democratas, do partido aos media, se alinharam e pressionaram de forma constante, por todas as vias a mudança que pretendiam. Sempre na defesa do legado de Biden, provaram ser os amigos maiores do ainda presidente dos EUA, do partido democrata e do próprio país.



A mudança estratégica. Do “when they go low, we go high” a when they keep low, we punch harder and sharper.


Donald Trump está longe de ter um grande repertório eleitoral. Conseguiu como muito poucos perder uma reeleição e afunilou o partido republicano para uma espécie de seita do ódio e das teorias da conspiração que infestam e ganham tração no Ocidente desde 2016. Pai do novo movimento da direita radical e extremada tanto no país como no mundo, a sua força maior reside aí.

A linguagem em relação aos seus adversários políticos não mudou. Quando muito, piorou. As teses conspirativas e as narrativas falsas não perderam intensidade. São cada vez mais frequentes e dispõem hoje de um leque alargado de ferramentas ao seu alcance no mundo digital. O projeto 2025 dos republicanos é o passo seguinte do extremar de Trump e do partido republicano dominado por ele. Além do reacionarismo, intencionalmente confundido com um certo conservadorismo, existe todo uma nova nuvem sinistra contida ali que descaracterizaria de forma definitiva os EUA e o faria recuar séculos.

Da linguagem, aos métodos, a esta realidade, os democratas já não têm ilusões quanto ao facto de Trump e quem o rodeia, querer destruir a democracia. Através de todos e quaisquer meios. Por isso mesmo, largaram a ilusão de que se pode combater isto sem verdadeiramente atacar o trumpismo e todos os que o exponenciam. Barack Obama, de forma subtil, sabia bem quais as plataformas em que aquele seu gesto durante o discurso na convenção permaneceria. É esta a mudança estratégica democrata. Vão-se sujar, mas é por aqui que ganharão em novembro a Casa Branca (sim, estou a fazer futurologia) contra as expectativas e sobretudo, depois da icónica imagem e não só, da tentativa de assassinato a Donald Trump.



Esta nova estratégia do partido democrata deveria ser retida por todos os líderes europeus e nacionais do espaço democrático hoje. Não se combate este fenómeno extremado, sobretudo com todos os alicerces que têm ao seu dispor hoje, com falinhas mansas. Ou, julgando que a política eficaz e com resultados por si só do espaço democrático os esvazia.

Isso é uma ilusão e não é preciso olhar apenas para os EUA. Será preciso ‘esmurrar’ melhor e acertar onde dói mais. Como Obama fez e todo o complemento estratégico dos “weird” por parte do partido democrata indicia.


Gonçalo Ribeiro Telles

Comentador na Sic Notícias e Consultor de Comunicação

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