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Opinião

Palavra da semana #94: Beleza

Onde se fala dos problemas de pedir à beleza o que não nos pode dar e ignorar tudo aquilo que nos oferece. A beleza é uma maldição? Então, benditos sejam os amaldiçoados!

Somos demasiado exigentes com a beleza. Acusamo-la de não durar, como se outras qualidades físicas, como a força, a rapidez, a destreza, a resistência, durassem e só a beleza definhasse. E, para a elogiarmos sem restrições e sem culpa, exigimos que traga atreladas virtudes morais que nos descansem quanto ao significado da própria beleza, da qual, por princípio e cautela, desconfiamos, como se fosse sempre um engodo a esconder um mal.

Como a beleza de facto não dura, em vez de aproveitarmos para a contemplar e desfrutarmos do seu auge sentimo-nos traídos pelas suas promessas não cumpridas, traídos por não a termos recebido enquanto dom. Somos vítimas da beleza por não sermos abençoados por ela e vítimas da beleza por sermos vulneráveis aos seus efeitos e não a podermos capturar. A única coisa que podemos fazer é destruí-la antes que ela nos destrua (não é isso que canta o assassino na canção de Nick Cave: “all beauty must die”?) ou esperar pacientemente que o tempo faça o trabalho sujo por nós.

Nas redes sociais costumam circular conteúdos que comparam atores muito belos quando jovens com a imagem presente da sua deterioração física e há na generalidade das reações todo um contentamento secreto e subterrâneo que irrompe à superfície em borbotão, como se o tempo, ainda antes da morte, fosse o grande nivelador, o justiceiro cego que reduz a escombros palácios e casebres. O tempo, esse grande escultor, é também o grande cobrador, mas enquanto nós, pobres criaturas que nunca conheceram a perfeição, nada temos para lhe dar, os que outrora foram belos pagam pela nossa fealdade e pela beleza de que foram imerecidos e efémeros depositários.

Alain Delon morreu e, descontando já os que o deploravam pelas suas ideias ou afinidades políticas, há quem o censure retrospetivamente argumentando que nunca foi grande ator, que era muito belo mas pouco talentoso. Ignoram estes críticos, com quem sou solidário por saber que na fonte do ressentimento de onde bebem também eu já me saciei, que em raríssimos casos, tão raros que os nomes se tornam sinónimos de perfeição, a beleza é uma forma de génio. Alguém como Alain Delon era um génio não apesar da beleza mas por causa da beleza.

A beleza é efémera? Mas nós, que com ela nos deleitamos, que nela vislumbramos o mundo anterior das ideias puras, somos efémeros, mamíferos de curta duração. Será menos valiosa por durar pouco? Ou é a sua brevidade e a sua fragilidade que a tornam valiosa? Serge Gainsbourg, um feio, dizia que a fealdade é superior à beleza por durar mais. É uma bela blague, mas que tem mais graça quando a ouvimos pela primeira vez. Com o tempo, seca, mirra. Como a beleza.

Certo. Há a beleza das coisas que duram e há a beleza das coisas que se extinguem. Uma dá-nos a ilusão da eternidade, a esperança vã de que, daqui a milénios, algo dê testemunho da nossa passagem pelo mundo. A outra, além de nos ofuscar, de nos ferir com o seu esplendor, só nos traz angústia por ser o lembrete, sempre que a contemplamos, da nossa mortalidade e da nossa impotência.

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