Em 2024, no ano em que comemoramos os 50 anos de Abril, está em ascensão nos recantos obscuros dos algoritmos online, nos confins da direita política ou no regresso do conservadorismo perverso, um combate contra o corpo feminino.
Direitos conquistados? Sim, muitos. Mas o que queremos é ampliá-los, reforçá-los e adaptá-los às necessidades reais das mulheres - hoje. Falo, claro, dos direitos reprodutivos e de saúde sexual, nomeadamente da interrupção voluntária da gravidez e da urgência de estender o prazo legal da IVG até às 14 semanas.
O prazo atual de 10 semanas é francamente curto, penalizador da mulher, não está ancorado na ciência e é reflexo da moralização constante sobre o tema.
Descobrir uma gravidez nem sempre é imediato. Entre ciclos menstruais irregulares e falta de sintomas iniciais claros, muitas mulheres só se apercebem da sua gravidez perto do limite atual de 10 semanas. O processo para obter uma consulta e conseguir acesso ao procedimento nem sempre é rápido.
Em 2022, 20% das mulheres que procuraram realizar uma IVG não conseguiram a primeira consulta prévia dentro do prazo legal de cinco dias e, em casos mais graves, cerca de 5% das consultas registaram tempos de espera que duplicaram ou triplicaram o prazo legalmente previsto. Perante isto, não deveria o SNS assegurar que existem meios sempre disponíveis para a realização do procedimento, sem atrasos ou entraves?
E o "período de reflexão"? Três dias para pensar se a mulher tem mesmo a certeza da sua decisão - como se uma mulher, antes de tão importante decisão, para si, para o seu corpo e para o seu futuro não tivesse já ponderado todas as consequências antes mesmo de marcar a consulta! Assinar um papel e esperar três dias para "confirmar" a decisão não é proteção, é burocracia paternalista. Respeitar a capacidade das mulheres de tomarem decisões sobre os seus próprios corpos, sem imposições arbitrárias, é o mínimo exigível.
Podemos ainda refletir seriamente sobre a objeção de consciência dos médicos. Sim, os profissionais de saúde têm o direito de não querer realizar o procedimento. Mas isso não pode, de maneira nenhuma, resultar no constrangimento do direito à IVG. Até porque, em Portugal, cerca de 30% dos hospitais não fazem interrupções de gravidez e 87% dos obstetras e ginecologistas no SNS recusam-se a realizar o procedimento. Esta decisão não deve ser, nunca, administrativa nem de terceiros.
Por isso, estender o prazo da IVG para 14 semanas não é um capricho é, sim, garantir que todas as mulheres em Portugal tenham a possibilidade real e segura de exercerem o seu direito de escolha, ultrapassando as barreiras e limitações, em tempo útil.
Nenhum ideal de liberdade estará completo enquanto não garantirmos que esses direitos serão respeitados, ampliados e adaptados às realidades do presente.
Chegou a hora de Portugal se alinhar com os países que já entenderam que 10 semanas é pouco e que a autonomia das mulheres sobre os seus corpos não é negociável. É por isso que temos de alargar a despenalização da IVG até às 14 semanas, agora! Porque a liberdade de escolher não pode esperar, mesmo que alguns à direita – o parceiro de governação minoritário, por exemplo – fantasiem com retrocessos.
Os direitos das mulheres são direitos humanos e, num mundo cada vez mais polarizado, inclusive entre géneros, não admitiremos retrocessos nem importações culturais do conservadorismo americano ou húngaro que, em Portugal, estão disfarçados de democracia-cristã. Os outros, ainda mais à direita, nem disfarçam.
A garantia do acesso à IVG, de forma segura, em todo o território e com prazos razoáveis é imperativo, sem barreiras administrativas, nem paternalismos legislativos.
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