Saiba o leitor que este texto é escrito por uma mulher feminista desde a adolescência que não odeia homens, apenas entende que o modelo patriarcal secular e homocêntrico não só não é um modelo unânime, como é distópico, opressivo, segregador e deve ser reavaliado para estancar as profundas desigualdades políticas, geopolíticas, económicas, sociais, arrastadas séculos após séculos.
A brutalidade do modelo patriarcal falocêntrico é de tal ordem traumatizante que instaurou o silêncio e tornou as mulheres, e alguns homens, permissivos e disponíveis a abdicar da sua liberdade para não questionar a inquestionável hegemonia da classe dominadora.
Nas últimas quatro semanas Imane Khelif, boxeadora medalhada argelina, fez correr muita tinta quando, logo na primeira prova foi protagonista de uma perturbadora vitória sobre a italiana Angela Carini.
A Federação Internacional de Boxe decidiu, depois da latejante prova a que se assistiu – e que durou pífios 46 segundos, terminando com Carina em lágrimas, derreada e a recusar-se a apertar a mão à sua adversária, abandonando o ringue logo no primeiro “round” – atribuir à atleta italiana “um prémio financeiro equivalente ao que é entregue a uma campeã olímpica”, como se lê no comunicado de 03 de agosto último.
Já sobre Khelif, uma tempestade de comentários acerca do seu género inundou meios de comunicação social e redes sociais, dando o apito inicial a uma outra discussão: É mulher, homem, mulher trans, intersexo? Afinal, o que é Imane Khelif?
O Comité Olímpico Internacional veio a público retesar que Imane Khelif é uma mulher e que competia, justamente, na categoria de 66kg de Boxe Feminino, afastando-se da decisão da Associação Internacional de Boxe que, no Campeonato Mundial Feminino de 2023, desqualificou a atleta por a entender não elegível para a competição feminina.
A ONGD americana GLAAD, Gay and Lesbian Alliance Against Defamation, que tem como objetivo apoiar a narrativa dos órgãos de comunicação social no sentido de, por um lado, exercer o fact-checking e combater as fake news e de, por outro lado, acelerar a narrativa de inclusão da comunidade na sociedade, informou em comunicado que Imane Khelif era (é) uma mulher cisgénero – nem transgénero, nem intersexo – com diagnóstico de Desenvolvimento Sexual Diverso, uma patologia rara que se traduz no desenvolvimento sexual de uma pessoa ser diferente do da maioria.
Este artigo de opinião tem um único objetivo: expressar o óbvio. Uma mulher é uma mulher. Não é uma pessoa com vagina, nem uma pessoa que menstrua, nem uma pessoa parturiente. Uma mulher é uma mulher por resultado de um processo de construção social duro, como, aliás, o provam estes vinte séculos de domínio do patriarcado.
Ser mulher é a mais valiosa medalha da grande olimpíada chamada vida, só conquistável por quem cresceu, socializou, performatizou, partilhou, menstruou, passou por ciclos biológicos hormonais e corporais durante, no mínimo, mais de duas etapas da vida.
Encarou o mundo dos homens com e sem TPM, bateu com o pé, partiu o salto, estalou o verniz, chorou, limpou as lágrimas, dormiu com o inimigo, ergueu-se e voltou a cair, engravidou ou não engravidou consciente de que era a ela a quem, em exclusivo, cabia o ato decisório da gravidez, criou, cuidou e, com tudo isto, por tudo isto e apesar de tudo isto, continua a ser a ela e só a ela a quem é esperado que suba a rua mais ingrime com o carrinho de supermercado carregado, sem que nenhum homem se sinta minimamente obrigado a apoiá-la.
Sendo que a alimentação é um ato de subsistência fundamental para a sobrevivência da humanidade, quem sobe a calçada somos nós, sempre, num “sobe que sobe,/ sobe a calçada”.
Imane Khelif, a atleta estrela deste verão de 2024, desfilou orgulhosamente com a bandeira do seu país depois de ter vencido a sua adversária Yang Liu. Fê-lo aos ombros de um homem, com tudo o que este ato simboliza para a esmagadora maioria de nós, mulheres, que não conseguimos sair de casa de mini-saia e decote sem ouvir o tradicional comentário: “Essa saia não é muito curta? Vais assim, com esse decote?”.
Da mesma forma, já na rua ou em qualquer sítio público por onde circulemos, ao brejeiro “fazia-te um filho”, nós, mulheres, ainda temos que passar pela prova dos polícias dos tamanhos S, M e L. Se a mulher for casada, é brindada com o “Bem… Ouve lá, ó Zé, hoje à noite há festa”; se terminou o relacionamento o mais certo é o estilo “que bem que ela está! Então, temos mouro na costa?”; se for solteira a pérola faz-se com um “anda à caça”.
Na semana passada, já findos os Jogos Olímpicos, com a medalha de ouro ao peito, Imane Khelif decidiu apresentar, e bem, uma queixa-crime por atos de assédio sexual agravado.
Dias depois, a atleta que afirmou alto e bom som “eu sou uma mulher”, optou pelo inusitado. Mudou de visual. Num vídeo publicado nas suas redes sociais com a legenda “Beauty Code”, a atleta, com o patrocínio de um instituto de beleza, trocou o cabelo curto apanhado por extensões e maquiagem a condizer com a camisa, cor-de-rosa.
Pessoas que mandam no mundo: ser mulher não é prova de vida, é estatuto. Conquista-se.