Palavra da semana #92: Cromossoma
Só o Manel pode esclarecer a dúvida que tem ocupado o mundo na última semana: a pugilista argelina é homem ou mulher?
Escritor
Só o Manel pode esclarecer a dúvida que tem ocupado o mundo na última semana: a pugilista argelina é homem ou mulher?
Depois de anos a discutirmos futilidades na Internet, finalmente um tema sobre o qual todos nós, ricos e pobres, altos e baixos, gordos e magros, brancos e negros, homens e mulheres, génios e iletrados, temos alguma coisa a dizer: genética. Nos Jogos Olímpicos de Paris compete uma pugilista argelina que, à primeira vista, parece um pugilista argelino. Ou simplesmente um argelino, pugilista ou não. E, de um momento para o outro, a atleta argelina substituiu a imagem do vestido azul que talvez seja castanho ou o desenho da cara da rapariga que, visto de outra forma, é o retrato de uma velha.
Imane Khelif compete há muitos anos como mulher sem que o mundo, provavelmente entretido com os estudos avançados de genética, se tivesse preocupado com isso. Até que a Associação Internacional de Boxe, que costumava dedicar-se apenas a verificar o peso dos atletas, anunciou que Khelif e outra pugilista de Taipé têm cromossomas XY e proibiu-as de competir. Já o Comité Olímpico autorizou a participação das atletas no setor feminino. E agora as duas são um teste de Rorschach. Uns veem uma mulher, outros veem um homem, outros veem o olhar ameaçador da mãe depois de um episódio de nictúria.
E é aqui que entra o saber de experiência feito do Manel. O Manel é o Mendel dos tempos modernos, o Crick e o Watson a olho nu, o idiot savant que sequencia o genoma de um urso-pardo só de o cheirar. Para o Manel, um cromossoma é apenas um “ganda cromo” – como na expressão hoje caída em desuso do “cromossoma berrante” – mas isso não o impede de, sentado no seu sofá, disparar sentenças com a precisão de um atirador turco. Depois de ouvir falar da polémica, o Manel nem quis saber de outras provas. Pesquisou imagens da pugilista argelina, mirou-a assim de alto a baixo e concluiu, apontando professoralmente o palito que, segundos antes, lhe pendia do lábio inferior: “pá! Aquilo é um gajo!”
O Manel é um poço de perspicácia. Não só é capaz de detetar o sexo de uma pessoa a cinquenta, sessenta metros de distância, e até pela televisão, como também de determinar a orientação sexual do indivíduo e saber se é ou não um pamonha. Para o Manel está literalmente na cara que a argelina era um argelino porque de argelinos – e marroquinos e ciganos e monhés em geral – percebe ele. E se mesmo assim a autorizaram a participar é porque há dedo da malta LGBTQ, que pode não parecer mas é uma comunidade muito influente na Argélia, como se vê nas roupas que eles usam. Se não são eles, são os árabes.
É natural que o Manel confie mais no seu instinto do que nos cromossomas porque nunca os viu e porque um cromossoma, de acordo com o dicionário (que é coisa em que o Manel também não acredita porque nunca viu nenhum), é uma “estrutura composta de ADN, normalmente associada à proteína e que contém genes arranjados em sequência linear, visível ao microscópio durante a divisão celular.”
Para quê investigar ao microscópio aquilo que qualquer Manel com dois olhos na cara vê na perfeição? Digam os cromossomas o que disserem, e até podem dizer que ele tem razão, ninguém tira da cabeça do Manel que a argelina é um homem. Se for homem, anda a bater em mulheres no lugar errado. Se é mulher então é virago, marimacho, fanchona, e devia estar a coser meias. Em ambos os casos são coisas que se fazem em casa.
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