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Palavra da semana #91: Icónico

Nem tudo o que é espectacular, marcante, extraordinário, é icónico: eis uma liçãoépica e brutal que as novas gerações deveriam aprender

Esta semana dei por mim a pensar na proliferação de icónicos. O icónico instalou-se na linguagem, a torto e a direito. Quase sempre a torto. Já houve a era, importada da cultura norte-americana, do épico. Também atravessámos, com algumas mazelas, a floresta do brutal. Mas se uma excursão à Serra da Estrela pode ser épica mesmo que não inclua corridas de quadrigas, conferências de deuses e feitos gloriosos, e até pode ser literalmente brutal, dependendo das atividades a que os excursionistas se dedicam, nunca poderá ser icónica, a não ser que o proponente de tal adjetivação não se importe de pontapear a língua portuguesa.

Certas palavras no contexto apropriado têm um sentido conotativo. Uma canção brilhante não emite raios de luz, não refulge. E aceita-se que alguém a considere “épica”ou, se tiver menos de dez anos, “brutal”. Mas o que uma canção não pode mesmo ser é “icónica”. Desculpem, mas há limites para a conotação e para as liberdades poéticas. Uma canção icónica é pior que uma sopa barulhenta. Só não está ao nível da “pastelaria hendecassílaba” de que falava Borges porque esta era uma invenção genial (épica, brutal,mas nunca icónica) e aquela é apenas uma facada, metafórica, no coração, metafórico também, da língua.

Da excursão à Serra da Estrela podem ter resultado fotografias inesquecíveis e icónicas, mas a excursão em si nunca poderia ser icónica porque não é passível de se transformar em imagem e em símbolo, num ícone. Admito que a Oscar Wilde, além do rótulo de escritor brilhante, se cole o adjetivo icónico (para menosprezar Mila Kundera, o Nobel Vargas Llosa disse que o checo naturalizado francês era um escritor brilhante, como certa fancaria). O mesmo não se poderá dizer de, por muito brilhante que seja a sua obra, Elena Ferrante, que nunca ninguém viu. Admitir-se-ia uma formulação criativa, a roçar o oxímoro, como “ícone invisível”, que lembra a feliz e muito usada “eminência parda”. Mais do que isso não.

Não me tomem por obtuso (aqui está o exemplo de uma palavra maleável). Sei que quando dizemos que um pensamento é sólido não estamos a pensar atirá-lo à cabeça de alguém, mesmo que, aplicando a força estritamente necessária, talvez servisse para abrir mentes obtusas. Um pensamento sólido é aquele que não se desfaz à primeira investida. É como uma casa assente em alicerces sólidos. E, por falar em casas, há muitas que são icónicas embora a quantia necessária para as comprar seja estrondosa ou obscena. Já um concerto, lamento desiludir a pessoa que assim se referiu à atuação brutal de uma banda num festival de verão épico, não pode ser icónico.

Não pode? Pronto, pode. Quem sou eu para impor regras, para destruir sonhos lindos de liberdade linguística? Tudo pode ser icónico se a alma não é pequena: uma frase de Wittgenstein pode ser icónica (depende de onde a tatuamos), uma sinfonia de Beethoven pode ser icónica, um caldo verde, visto do ângulo correto, pode ser icónico, uma ideia, um poema, a vontade súbita de esmurrar o utilizador desajeitado do icónico, tudo pode ser icónico. Mas permitam-me que me emocione quando a palavra é usada a preceito e com propriedade: a fotografia do anjo Gabriel Medina a pairar sobre as águas, essa sim, é icónica.

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