Opinião

Democracia ou oligarquia (a democracia nos EUA)

Democracia ou oligarquia (a democracia nos EUA)

Agostinho Lopes

Membro da Comissão Central de Controlo do PCP e responsável pela Comissão para os Assuntos Económicos

Como é que esta intervenção directa e indirecta dos oligarcas “norte-americanos” nos actos eleitorais, nomeadamente na seleção dos candidatos, na dimensão da propaganda e uso dos meios de comunicação social, no suporte das diversas acções de campanha não causa engulhos, reflexão, crítica nos cultores da “democracia liberal”, é um perfeito mistério!

O debate Trump/Biden, apesar de perturbado pelo atentado contra Trump e o recente anúncio do afastamento de Biden, continua a ser uma oportunidade para uma reflexão séria sobre o estado da democracia nos EUA. Houve e há ainda referências a “uma das mais vibrantes democracias do mundo” (Editorial do Público, 15JUL24), certamente confundindo “vibração” com a “feira” e o “circo” da Convenção Republicana no Milwaukee (Público, 18JUL24). Mas, variando nos adjectivos, há uma constatação quase consensual dos comentadores (1) sobre o mau-estado da “democracia liberal” norte-americana.

(E diz-se quase porque há também os que pura e simplesmente ignoram a questão, ou a reduzem, trocando causa e efeito, ao problema dos candidatos em disputa, ou a “desarranjos” das cabeças do eleitores causados pelas “redes sociais”, MST).

JPTF refere, agora, em “2024: o ano da distopia nos EUA” que “a democracia mais vibrante e importante do mundo transformou-se, de forma espantosa, numa bizarra gerontocracia”. MJM refere que, em anterior texto no Público, escreveu sobre a “crise da velha democracia americana”, com “instituições desenhadas para o fim do século XVIII”. Mas já nas eleições presidenciais de 2020 CFA falava da “imperfeição da democracia americana traduzida num sistema obsoleto”. Mas julga-se que tudo o que envolve o debate levanta um conjunto de interrogações arrasadoras do afirmado “modelo liberal de democracia” elevado a referência absoluta e urbi e orbi dos princípios e regras que devem presidir a um regime democrático.

Como é possível defender um “modelo” que conduziu ao debate de 5 de Julho? Como disse, e bem, LAC: “Nesta fase da vida colectiva norte-americana, escolher entre um mentiroso narcisista e uma mente em acelerada deterioração não é democracia.” Mas como foi possível tal acontecer? Como foi possível que os dois principais e indigitados candidatos à Presidência da República da “maior democracia do mundo” fossem as duas figuras patéticas que se viram no debate? O que são e para que servem os seus ditos partidos, Partido Democrata e Partido Republicano, que há largas décadas dominam em alternância, convergentes no fundamental das políticas interna e externa, o sistema político americano? Que sistema de poder político é este que legitimou como candidatos desses Partidos um Trump com largo cadastro judicial e um Biden com os neurónios fundidos? “É extraordinário pensar (diz MST/Expresso, 19JUL24) que, entre 333 milhões de americanos, a disputa se faça entre um homem que é a essência do próprio mal (2) e outro cuja campanha eleitoral está reduzida a fazer prova de sanidade mental todos os dias, arrastando os pés e a voz, confundindo a Suíça com a Suécia, chamando Putin a Zelensky e Trump à vice-presidente Kamala Harris.” (Realmente...) Como é possível que essas entidades – Partido Democrata e Partido Republicano – tenham assumido como seus lídimos representantes as figuras de Trump e Biden? O debate foi o resultado dessa escolha! Mas detectado o erro, mesmo tardiamente, das escolhas esses Partidos não se mexeram para alterar os candidatos?! Não podiam? Não queriam?

Sabemos da complexidade do sistema que – coisa admirável para a democracia – segundo CFA, é “um sistema de uma complexidade tal que pouca gente de fora da América o compreende ou explica, e o americano comum não abarca a complexidade apenas se sujeita a ela (Revista Expresso, 29OUT20)”. Segundo o correspondente do Expresso nos EUA, “It`s time to go, Joe”, pedem os democratas”, mas Biden recusava (e bem segundo alguns portugueses, como HM!) e “Apesar da torrente de pedidos em pânico chegados à Casa Branca e à sede do Comité Nacional Democrata – órgão máximo do partido, a substituição do candidato é quase impossível devido à complexidade do processo”. Mas eis senão quando, desta pequena, mas atenta, ocidental praia lusitana brotou a solução! Diana Soller, comentadora da CNN, deu à luz mediática a solução: “Se os doadores não financiarem a campanha de Joe Biden, será muito difícil que não venha a ser substituído”! E os doadores ouviram-na!

Democracia ou oligarquia

Se é verdadeiramente extraordinário o dilema (com saída mais trágica que o da Biblioteca da Alexandria!) exposto por MST da escolha dos 333 milhões de americanos, não é menos extraordinário que gastando resmas de papel e horas sem fim com as eleições presidenciais dos EUA, os jornalistas e comentadores, com raríssimas excepções (sempre atentos e bem, embora nem todos praticantes, das formalidades legais eleitorais que garantem isenção, equidade, igualdade, transparência das candidaturas e processos eleitorais em Portugal), nada digam, zero letras, zero sons, zero imagens sobre o facto – ao que parece sem importância – dos “doadores” financeiros das campanhas puderem decidir quem são os candidatos. Extraordinário que tal seja aceite como a normalidade em eleições, um “normal eleitoral”! Que tal, pelo menos pela dimensão das verbas envolvidas, levasse a algum rebate de consciência democrática sobre a democraticidade das eleições norte-americanas? Que não atinge apenas a eleição do Presidente da República dos EUA, mas de todos os órgãos e mandatos do poder político (e não só), congressistas, deputados à câmara dos representantes, governadores dos Estados, e respectivos parlamentos, etc., etc. Ou seja, é uma questão transversal a todo o sistema de poder político, que atravessa todos os encadeamentos e articulações das suas instituições e representantes eleitos!

Sabemos todos que a questão não é nova! Sem apoio dos doadores não há candidatos, diz CFA, que a propósito da eleição de Biden/Trump em 2020 mandava “Folow the money”: “Quem poderá concorrer à Casa Branca, ao Senado e à Casa de Representantes se não tiver muito dinheiro por trás? Ninguém. O mínimo que um candidato pode angariar para concorrer são 5 mil dólares em pelo menos 20 Estados, no início, mas percebe-se que a quantia não pagaria os cafés da campanha presidencial. Um candidato sem o apoio de um dos partidos, e a mobilização e capacidade de recolha de fundo, é um candidato que jaz morto e arrefece. Os independentes terão que ser multimilionários, mas se não correu bem para Ross Perot ou Mike Bloomberg, tendo este gasto milhões para se colocar na corrida (de 2020) e conseguir a nomeação Democrata, nunca correrá bem para quem não conseguir a nomeação de um dos partidos”. Como é possível falar de modelo de democracia com esta sórdida corrupção pelo dinheiro de qualquer concretização de um processo eleitoral?

Poder-se-ia falar também do recente exemplo de Jamaal Bowman, congressista democrata, derrotado por George Latimer, nas primárias do Partido Democrata no 16.º Círculo Eleitoral de Nova Iorque, graças ao dinheiro de um loby pró-israelita (American Israel Public Affairs Commitee/AIPAC) que apostou na eleição 25 milhões de dólares! (4). A dimensão dos valores “oferecidos” pelos doadores assusta. E daí a percepção clara do seu poder decisório na indiciação, escolha, nomeação e eleição dos candidatos. (4) Na eleição em curso, e consequências do debate, foi notícia, nas pressões feitas sobre Biden (que hoje sabemos que resultaram) para que desistisse e renunciasse à nomeação pela Convenção Democrata, o congelamento de 90 milhões de euros pelos doadores. O que se juntou a muitas outras, como a retirada de George Cloney de animador de iniciativas de captura de doadores (Clooney que “há anos ajuda a organizar angariações de fundos democratas, como um evento de 15 milhões de dólares para Obama em casa de Clooney em 2012”, Público, 13JUL24), a par da ameaça de uma destacada doadora como Abigail Disney. Mas antes disso, a 15 de Junho, a festa de angariação de fundos tinha sido um sucesso: “rendeu mais de 30 milhões de dólares (…) para a campanha de Biden” (Público, 13JUL24). Ou noutro sentido, a informação de que Elon Musk se terá comprometido a doar 45 milhões de dólares por mês à campanha de Trump, que, aliás, serve de leitmotiv para uma campanha mundial de fundos (chegou a Portugal pelo menos!) de apoio a Biden para salvação da “democracia”... Notável!

Como é que esta intervenção directa e indirecta dos oligarcas “norte-americanos” nos actos eleitorais, nomeadamente na seleção dos candidatos, na dimensão da propaganda e uso dos meios de comunicação social, no suporte das diversas acções de campanha não causa engulhos, reflexão, crítica nos cultores da “democracia liberal”, é um perfeito mistério! (Desconhece-se a avaliação que CFA, a voz que com mais veemência tem denunciado o papel dos doadores nas eleições (voz quase isolada), faz da democracia, ou pelo menos do sistema eleitoral, nos EUA!).

Como se escreveu (5) a propósito da “descoberta” de Diana Soller: “Meses de abnegada construção de aparências, laboriosas construções semânticas. Esforçadas cogitações para dar por boa e adquirida uma certa narrativa e, zás!, num ápice abre-se a boca e é o desastre, o esboroar desse labor. Foi assim com Diana Soller, esforçada propagandista do militarismo dos EUA e da NATO, diligente reprodutora daqueles lugares comuns erigidos a verdades universais, não por o serem mas por tantas vezes serem repetidas passarem a sê-lo, sem o ser. Toda aquela conversa sobre a supremacia dos valores do Ocidente, a virtude democrática atlantistas face às “autocracias” orientais, as virtuosas dimensões de sistemas eleitorais do mundo capitalista capaz de reproduzir o que é minoritário em maioria – inspirado na dinâmica reprodutora do capital – se viu num ápice desnudada.” E importa registar o que lhe está subjacente: “o desmentido categórico da elevação democrática daquele farol ocidental, da superioridade ética e lisura eleitoral baseada no suborno financeiro, da genuína independência política que dali resultará entre doador e receptor, da nobreza de procedimentos ali revelada se comparada com esses actos eleitorais do Sul global tão banais que dispensam convenções, compra de votos, revelação de escândalos, exposição de vidas pessoais. E sobretudo, a garantia de que se ganha sempre com 100% se se atender que entre burros e elefantes, ou seja democratas e republicanos, em termos de objectivos é de partido único que se trata.”


Notas:

(1) Sem qualquer critério de seleção, por ordem alfabética: Clara Ferreira Alves (CFA, Revista Expresso; Diana Sollers (DS), CNN; Henrique Monteiro (HM), Expresso; José Pacheco Pereira (JPP), Público; José Pedro Teixeira Fernandes (JPTF); Luís Aguiar-Conraria (LAC), Expresso; M.ª João Marques (MJM), Público; Miguel Sousa Tavares (MST), Expresso.

(2) J. Pacheco Pereira como MST, transformam Trump, “um ser maléfico”, no mau da fita, no bode expiatório de tudo quanto possa acontecer nos EUA e com os EUA. Repete no Público de 21JUL24, “Deus apoia nas eleições americanas um narcisista patológico”, o que já tinha dito em textos anteriores: “Parece um filme de terror. Com a escuridão vem toda uma série de prodígios maléficos, o principal é ver o Diabo à solta travestido de Deus.” “Se Trump ganhar as eleições o mundo vai conhecer uma crise que pode ser daquelas que marcam o fim de uma era.”

(3) Texto de António Rodrigues, “Quanto custa calar uma voz?”, Público, 28JUN24.

(4) As notícias da imprensa por estes dias evidenciam com clareza o papel nuclear dos doadores nas eleições: “O facto de Biden não ter agido de imediato (após o debate) para acalmar os receios no Partido Democrata (…) adensou a preocupação de políticos e doadores financeiros.” (Público, 04JUL24); “O nervosismo entre os democratas acentuou-se quando alguns grandes doadores ameaçaram retirar o apoio à campanha, o que seria um duro golpe para a manutenção da candidatura.” (Jornal de Negócios, 08JUL24); “As sondagens negativas em relação a Joe Biden, particularmente em Estados decisivos como os da região do Midwest, tem despertado fricção no seio do partido e descontentamento entre os grandes doadores, tais como Abigail Disney, que já ameaçou cortar o financiamento da campanha caso Biden não desista.” (Oh Joe, Jornal de Negócios, 11JUL24); “Políticos do seu partido e doadores pedem-lhe que se afaste, dada a aparente limitação cognitiva, reflectindo a opinião de mais de dois terços dos americanos expressa em sondagens.” (Expresso, 12JUL24); “Altas figuras de Hollywood, artistas e milhares de outros californianos entraram num teatro de Los Angeles no mês passado, à espera de uma angariação de fundos repleta de estrelas para o Presidente Joe Biden, apoiada pelos actores George Clooney e Julia Roberts, que injectaria milhões de dólares na campanha de Biden e o lançaria no caminho para derrotar Donald Trump em Novembro.” (Público, 13JUL24); “Até novembro, se nada demover o atual Presidente, os financiadores tenderão a retrair-se, a dissensão no campo democrata acentuar-se-á, o tema da idade tornar-se-á sempre presente e será o filtro através do qual todas as intervenções de Biden serão interpretadas.” (Pedro Adão e Silva, Público, 21JUL24). Parece evidente o papel central, ao nível dos “políticos”, dos doadores, isto é dos oligarcas, em decisões fundamentais do processo eleitoral.

(5) Jorge Cordeiro, A franqueza é uma virtude, Avante!, 11JUL24.

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