Seríamos melhores pessoas se reconhecêssemos a arbitrariedade que é ter nascido aqui ou ali
Uma questão com que a Filosofia se entretém desde há muito é a “lotaria natural” que distribui de forma arbitrária posições sociais, riqueza ou cor de pele. Nasce-se lá, do outro lado do planeta, a rezar a outro deus, num sistema de desigualdades, e não rico, a rezar a outro deus neste hemisfério — sem que se perceba que não foi uma escolha, mas um acaso geográfico inicial. Às vezes, ainda é mais absurdo, pois basta nascer de um lado de uma fronteira, de um muro, a poucos quilómetros de distância, para ter o destino traçado desde o nascimento. Imaginemos o menino André; nasceu em Portugal e era católico devoto quando jovem, por sua decisão. Isso foi opção. Mas ali na transição do século XX para XXI, a conjuntura permitiu-lhe que todo o percurso escolar até à universidade fosse feito no ensino público e mesmo o seu doutoramento no UK sobre “estigmatização de minorias” se devesse a uma bolsa do Estado português. Há valor no André. Mas teve sorte com onde nasceu e quando, dadas as vias que se abriram para lhe dar o apoio que teve para singrar. Tivesse nascido uns mil quilómetros a sul numa família de pequenos comerciantes dos arredores de Casablanca, mesmo sendo um muçulmano devoto e bom estudante, e o seu destino estava traçado, e não passaria por um doutoramento em York. Muito menos se tivesse nascido 5000 quilómetros a sul, em Niamey, capital do Níger. Aí, para se safar às milícias ligadas ao Estado Islâmico que combatem as da Al-Qaeda, era bom que o pai tivesse umas cabeças de gado para ele pastorear e sair da cidade. Talvez se safasse. Talvez. Mas também era possível que fosse raptado por um dos grupos para se tornar combatente-criança. Sem ter voz na matéria. Porque teria nascido ali na África subsariana e não branco de classe média em Algueirão. Nada disto teve que ver com o facto de um deus ser melhor do que outro. Arbitrariedade geográfica. Podia ter nascido multimilionário. Pois, mas é ver o ratio multimilionários/pobres nos 7 mil milhões de habitantes no planeta para perceber o incrível que é termos nascido em Portugal.
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