Opinião

Deixou de ser um mistério público

Deixou de ser um mistério público

Gonçalo Ribeiro Telles

Comentador político, fundador e consultor de comunicação na GRiT Communication & Political Risk

É a política que interessa e o movimento inorgânico no seio do Ministério Público deve ser definido hoje como um agente disso mesmo

Ainda ninguém percebeu porque foi um ex-ministro e secretário de Estado escutado durante mais de quatro anos, mas conhecem-se algumas decisões judiciais que, entre outras, arrasaram por completo essa realidade que só se pôde tornar pidesca e reveladora ou perigosa.

Sabe-se, por exemplo, que da Operação Influencer que ajudou a ditar a queda do anterior governo, três juízes concluíram há dois meses o mesmo que havia ditado o tribunal de instrução criminal: a convicção que não existe qualquer crime e que daí não tivesse feito qualquer sentido a prisão preventiva pedida pelo Ministério Público para dois dos arguidos numa primeira fase.

A 17 de abril, esse mesmo tribunal sentenciava o descrédito total da investigação e aquilo que era dado como prova. Chegou a ir mais além, ridicularizando a forma e o método dos “indícios de crime.” Políticos a serem políticos, a defenderem os interesses do país na sua conceção, empresários a serem empresários, juntando-se a necessidade de regulamentar o lobbying e por aí fora.

Perante o reforço de alguns factos e desta decisão contundente, difícil era não perceber que existia um problema grave no seio desta entidade fulcral. De tal forma que poderia colocar em causa o nosso sistema democrático, de direitos, liberdades e garantias.

Tudo se adensou quando a reação do Ministério Público a esta última decisão foi igual à de uma espécie de movimento inorgânico dentro da justiça, desprezando a separação de poderes e o escrutínio à investigação que tinha deixado os mais livres e distantes das ‘claques’ políticas surpreendidos pelos ‘pormenores’ ou a falta deles desde o dia 7 de novembro.

De toda esta recapitulação e de outros timings incompreensíveis, sobra ainda a nitidez de um padrão através da intervenção apocalíptica e desconexa na Madeira, cujo exagero tombou logo à partida, através da decisão do Juiz de instrução.

Mas a realidade é que o mistério prolongado na forma de atuar do próprio Ministério Público deixou de o ser ao dia de ontem. Ao partilhar e divulgar com um meio de comunicação social as escutas truncadas de António Costa, que, nada têm a ver com a Operação Influencer, atropelando pela enésima vez o suposto segredo de justiça, ficou claro que o crime para a nossa instância de investigação passou a ser irrelevante.

É a política que interessa e o movimento inorgânico no seio do Ministério Público deve ser definido como um agente disso mesmo. Convém é ter cuidado com o exagero na questão do Estado de Direito. Um ministério público contaminado desta forma, sem hierarquia, é uma enorme ameaça à democracia, mas é travado a tempo pela justiça, sempre que investiga e atua através desse movimento.

Já não é apenas a reforma dessa mesma justiça como um todo que é urgente para ontem. Antes mesmo, torna-se crucial escrutinar e desconstruir a agência política que existe no seio do Ministério Público.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate