Faz sentido um tribunal de imigração e asilo?
O acesso a uma justiça especializada nunca poderá ser violadora de direitos humanos, muito pelo contrário. É a melhor forma de promover a efetividade dos mesmos
Investigadora do Lisbon Public Law - Faculdade de Direito de Lisboa
O acesso a uma justiça especializada nunca poderá ser violadora de direitos humanos, muito pelo contrário. É a melhor forma de promover a efetividade dos mesmos
Uma das várias medidas de aplaudir do Plano Nacional para as Migrações – a par da há tanto tempo necessária eliminação das “manifestações de interesse” – consiste na criação de um tribunal de imigração e de asilo. As duas medidas são essenciais para se respeitar os direitos humanos de quem procura Portugal para viver. Como já tive oportunidade de escrever neste jornal, no que toca à primeira medida o regime até então em vigor potenciava a chamada de imigração ilegal, com uma promessa, difícil de cumprir e sempre adiada, de regularizar as pessoas no final de certo período. Ao eliminar-se tal regime – desde que se reforcem as vias para imigração legal –, estamos no bom caminho. Mas a criação de um tribunal de competência especializada na matéria também irá contribuir, crê-se, para que a imigração não fique fora do Estado de Direito.
O atual sistema de acesso ao direito por parte de imigrantes é profundamente complexo, e não raras vezes os próprios advogados na matéria têm dúvidas. Senão vejamos: os recursos de diversas decisões (recusas de autorização de residência, asilo, afastamento administrativo do território), cabem aos tribunais administrativos. No entanto, alguns processos são da competência dos tribunais judiciais: assim, os casos de detenção de migrantes (muitas vezes ainda decididas sem audição judicial), de aplicação de medida de proteção de menores não acompanhados e as expulsões judiciais autónomas. É imperiosa a junção destas matérias na mesma instituição, que poderá também promover uma melhor harmonização das várias instituições e autoridades intervenientes na matéria, tão mais importante após o desmantelamento do SEF.
Por outro lado, a matéria em causa é profundamente ligada à garantia de direitos fundamentais básicos. O juiz administrativo que decide os processos urbanísticos ou de função pública, poderá, no minuto a seguir, ter de decidir se determinada pessoa corre efetivamente um risco de perseguição no seu país, e admitir ou não o asilo. De repente, a decisão sobre a vida e a morte está nas mãos de quem decide a legalidade de um concurso público. É imperiosa a especialização e a dedicação exclusiva nesta matéria. É imperioso que o Centro de Estudos Judiciários passe, também, a dar formação sobre ela nos cursos iniciais.
Algumas vozes têm-se manifestado preocupadas com a constitucionalidade da solução do tribunal especial. Aparentemente a solução passará por algo inovador: congregar as jurisdições administrativa e comum na mesma instituição. Com esta solução, não se priva nenhuma da sua competência constitucionalmente atribuída. Por outro lado, a Constituição não tem uma lista taxativa dos tribunais de competência especializada. Outros têm vindo a ser criados, para além dos aí previstos, sem grande celeuma. Por fim, esta solução não viola, como já li, o princípio da igualdade. Não é um tribunal “para estrangeiros”. É um tribunal com competência especializada em função da matéria, i.e., no que toca ao conjunto das normas relativas à entrada, permanência, afastamento e asilo em Portugal. Noutras matérias: trabalho, civil, urbanismo, etc., em que estrangeiros sejam parte, continuarão a ter acesso aos mesmos tribunais que os portugueses.
O acesso à justiça em matéria de imigração constitui um dos pilares do Pacto Global para as Migrações e Asilo, afirmado em 2018 pelas Nações Unidas. Por seu turno, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem vindo a insistir na necessidade de se garantir um acesso à justiça efetivo por parte de migrantes e requerentes de asilo. O acesso a uma justiça especializada nunca poderá ser violadora de direitos humanos, muito pelo contrário. É a melhor forma de promover a efetividade dos mesmos.
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