Opinião

Se abortar é matar, então as mulheres que têm abortos espontâneos são assassinas involuntárias?

Se abortar é matar, então as mulheres que têm abortos espontâneos são assassinas involuntárias?

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Não me admira nada que com o conservadorismo de direita em voga, o direito ao aborto seja constantemente questionado, sendo que o é maioritariamente por homens. Tudo isto é apenas mais um conto de tentativa de controlo da vida das mulheres

Não me admira nada que com o conservadorismo de direita em voga, o direito ao aborto seja constantemente questionado, sendo que o é maioritariamente por homens. Tudo isto é apenas mais um conto de tentativa de controlo da vida das mulheres (até porque só faz uma Interrupção Voluntária da Gravidez quem a quer). Se o feto é carregado num útero, se é parido por quem o carrega, a decisão de continuar ou não uma gravidez tem de ser da pessoa que ativamente está grávida. E, não nos esqueçamos, que no prazo legal para efetuar um IVG, comprovadamente, o feto não sente qualquer dor.

Já escrevi bastante sobre este assunto, mas volto a referir. A gravidez pode acontecer em qualquer relação sexual quando envolve pessoas férteis, uma com vagina e útero e outra com pénis. Mesmo tomando todas as precauções, se não houver um conhecimento do ciclo e dos dias férteis da mulher, é possível engravidar. Apelar à abstinência de quem não quer ter filhos em relações hetero, para além de ser inocente, pode até ser nocivo para a saúde mental das pessoas.

Tendo em conta a crónica publicada no passado dia 29, de autoria de Mário Pinto, este assunto volta a estar na mesa de discussão. O Professor baseia-se, literalmente, em argumentos considerados verdadeiros no século passado e de há dois séculos, a partir de uma premissa que por si só já é muito duvidosa: para Mário Pinto, fazer um aborto é matar. Se abortar é matar, então, ter um aborto espontâneo é ser culpada de um assassinato involuntário? Foi precisamente este tipo de pensamento que levou várias mulheres em El Salvador a serem condenadas a pena de prisão por terem tido abortos espontâneos. E que tal pensarmos mais um pouco no que dizemos, Sr. Professor?

Há pessoas, como Mário Pinto, que valorizam mais a vida de um feto do que a vida de uma mulher feita, adulta, com discernimento, com uma vida independente. É muito fácil mandar no útero dos outros quando não somos nós a carregar o feto, a ter de parir, a ter de cuidar. Em termos de liberdade, a hierarquia da sociedade trata-se, segundo o cronista e citando Norberto Bobbio:

  1. Homens
  2. Fetos
  3. Mulheres

Até um feto tem mais direitos do que uma mulher, enquanto os direitos desta são considerados meros derivados, colocando toda a culpa do mundo na mulher. Uma tradição catolicamente conservadora, sem dúvida.

“A vida do filho nunca sacrifica a liberdade da mãe, porque essa liberdade só é sacrificada se a mãe quiser. E a liberdade da mãe sacrifica sempre que queira a vida do filho.”
Mário Pinto

A crónica começa usando como argumento o constitucionalismo humanista proclamado na Revolução Liberal do final do século XVIII, que dizia que a vida da pessoa humana é inviolável desde a sua concepção. Ora, neste mesmo século, em termos de crenças e práticas da medicina, ainda se tratavam condições com a prática regular de sangrias. Foi a prática médica mais comum até ao final do finais do século XIX. Hoje em dia, continuará a ser a prática mais comum? Claro que não, pois já evoluímos para perceber que este tipo de tratamento não é, de todo, a solução para a grande maioria de condições de saúde.

Olhemos para a prática da massagem pélvica como tratamento para a histeria, por si só já uma definição de ‘doença’ feminina meramente misógina, comumente diagnosticada entre os finais do século XIX e princípio do século XX. Os sintomas de Histeria, incluíam mudanças de humor, bocejos, dor no peito (…), sendo que o tratamento eram massagens pélvicas e no clítoris, sendo que o tratamento estaria a fazer efeito que a mulher demonstrasse uma reação de libertação. Hoje, claramente sabemos que essa libertação seria um orgasmo. Sabemos, também, que o diagnóstico de “histeria” só deve estar patente em livros de História como algo do passado. Foi graças a este tratamento, na verdade, que se inventaram os primeiros vibradores. No entanto, teria sido mais agradável que a origem deles não tivesse acontecido na esfera masculina de procura de controlo das emoções das mulheres.

Lembremo-nos, igualmente, que, por exemplo, só começou a ser reconhecida uma ligação entre o hábito de fumar e o cancro do pulmão nos anos 40 e 50. Ora, algo que sabemos é que a ciência vai evoluindo com estudos, estudos e evoluções feitas a partir da observação humana. Já ninguém faz uma sangria quando alguém está com febre de uma gripe. Já ninguém acredita que fumar não faz mal aos pulmões. Já ninguém faz um diagnóstico de ‘histeria’ e a cura com mensagens pélvicas. O pensamento evoluiu, em todas as áreas da Ciência, incluindo as Humanas. Não vivemos no século XVIII ou XIX, vivemos no XXI. Se ainda tivermos tal e qual a mesma opinião de há 5 anos, até, já estamos em modo de estagnação. Se formos pautar o nosso pensamento crítico pelas leis de há séculos atrás, então poderemos até correr o risco de achar que as mulheres não deveriam votar. Mais um bocadinho, e, talvez, o Professor Mário Pinto chegasse a esse ponto. Se o direito do aborto, relativo ao corpo da mulher, não é um direito da mulher, diz ele, talvez o voto também não devesse ser, visto que os candidatos são maioritariamente homens.

Dito isto, todas as ciências, incluindo as Humanas, são passíveis de evolução. Todas, sem excepção. Por sua vez, a Lei foi feita por pessoas. Pode, e é, alterada constantemente por pessoas. Desta forma, basear uma opinião moral numa lei do século XIX ou anterior, não me parece uma boa premissa. Não deveríamos pensar a Lei conforme a realidade das pessoas? É muito fácil mandar no útero alheio, quando nada se sabe sobre a realidade de quem vai ver a sua liberdade limitada pela Lei.

O Professor refere que a vida no nascituro (feto) é vida humana. Se ficasse por aqui, ainda perceberia, já que vida do nascituro é vida humana, no sentido em que faz parte do corpo da mulher. O feto não tem qualquer viabilidade, nas semanas legais para a IVG, fora do corpo da mulher. Fazendo parte do corpo da mulher, estamos a falar da autonomia corporal da mulher.

Além disso, diz que uma mulher que realize um aborto está “sacrificar completa e definitivamente o direito à vida do filho”… Palavras mais julgadoras? Impossível. Já não chegavam as barreiras dos hospitais objetores de consciência, também temos pessoas com tamanhas palavras julgadoras a serem professores universitários e a escrever textos destes.

A lei do aborto deveria ser apenas debatida por quem ela pode abranger, por todas as pessoas com útero. Quando os homens cis puderem engravidar, parir e ter de criar possivelmente os filhos sozinhos, então, sim, poderão ditar da sua justiça. Até lá, podem sempre apoiar a decisão de quem pode engravidar, ou fazer vasectomias.


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