Apesar de Você
Vivemos no pesado “hoje” da ressaca emocional de uma noite eleitoral em que a extrema-direita arrecadou mais de um milhão de votos e consegue quase cinquenta mandatos, elegendo em quase todos os distritos.
Vivemos no pesado “hoje” da ressaca emocional de uma noite eleitoral em que a extrema-direita arrecadou mais de um milhão de votos e consegue quase cinquenta mandatos, elegendo em quase todos os distritos.
Começo este artigo com um aviso à navegação: não tenho uma grande resposta para as questões que aqui lanço. Este texto é um exercício de reflexão para o qual vos convido. “Apesar de você”, cantou Chico Buarque, “Amanhã há de ser outro dia”. O cantor brasileiro, numa das suas mais famosas canções, critica a ditadura que pesava sobre o Brasil e remete para esse “amanhã” luminoso a esperança de um mundo melhor. Não estamos nesse “amanhã” ainda, vivemos no pesado “hoje” da ressaca emocional de uma noite eleitoral em que a extrema-direita arrecadou mais de um milhão de votos e consegue quase cinquenta mandatos, elegendo em quase todos os distritos.
Este ano celebramos os 50 anos do 25 de Abril: estará a extrema-direita de volta ao governo aquando destas celebrações? É ainda uma incógnita. Para todos os que olhamos para esta data com admiração e gáudio ecoa uma pergunta, cada vez mais audível, na parte de trás da nossa mente: como? As pessoas não têm memória? Não se lembram do que foi a ditadura? Por isso, proponho-me a deixar-vos algumas linhas sobre memória, um dos termos mais usados, reutilizados e debatidos dentro da história e das ciências sociais nas últimas décadas. Termo que explodiu para o debate público nos últimos anos face ao ímpeto da extrema-direita que alude desavergonhadamente às velhas ditaduras fascistas da primeira metade do século passado. Em Portugal, o Chega utilizou precisamente o mesmo slogan que era usado pela ditadura fascista - Deus, Pátria, Família - acrescentando-lhe apenas “Trabalho”. A Juventude do próprio partido publicou também uma fotografia do líder com a descrição “Um País! Um Líder! Um Destino!”. Soa familiar: “Ein Volk / Ein Reich / Ein Führer”.
Quando os mais jovens votam de forma considerável na extrema-direita, o que dizemos nós sobre a transmissão de memória entre gerações, sobre o dever de recordar?
O próprio termo “memória” é alvo de acesos debates. Penso aqui nele como “memória coletiva”, uma forma de representação e reconstrução do passado coletivo no presente, sempre a ser trabalhada e reorganizada por diversos grupos sociais. Perguntemo-nos então: como ficou a memória de Abril? Quando os mais jovens votam de forma considerável na extrema-direita, o que dizemos nós sobre a transmissão de memória entre gerações, sobre o dever de recordar? Abril deixou de ser um projeto político emancipatório e foi moldado ao status quo, para significar tudo e nada, para ser apenas uma matéria do currículo de História A para o exame nacional. Como já se discutiu no caso de outras memórias - do fascismo italiano ou do nazismo alemão, da ditadura de Pinochet ou da junta militar argentina, do genocídio da Bósnia - porque se esquecem as pessoas dos horrores, mesmo quando nem um século deles passou?
O historiador Enzo Traverso fala sobre um embalsamar da memória: esta ideia de que condenamos coletivamente um dado fenómeno como sociedade, tornamo-lo politicamente neutro e colocamo-lo em museus, monumentos e memoriais, fazemos dele uma espécie de “religião civil”, moldável às várias posições políticas mainstream que dele se queiram aproveitar. Talvez seja interessante pensarmos a memória de Abril desta forma. Enquanto alguns partidos e movimentos sociais e cívicos guardam uma memória revolucionária e anticapitalista de Abril, ele foi alvo de um processo generalizado de despolitização (como explica tão bem o historiador Manuel Loff), em que a Revolução social foi cunhada com um excesso e tudo foi reorganizado como uma transição tranquila para uma democracia liberal. À medida que isso acontecia, alguns daqueles que se reivindicavam da memória de Abril - mas desta já mais bem-comportada, sem revoluções à mistura - esfregaram as mãos enquanto destruíam o Estado social, abriram as portas às privatizações, desmembraram a Constituição e enterraram o sonho de um país de iguais. As suas políticas empurram as pessoas para uma vida na qual o futuro se apresenta como uma mera repetição desesperante de um presente de dificuldades e, ao mesmo tempo, dizem-lhes que isto é o projeto de Abril.
Não é. O que fazemos então com a sua memória? Como é que a revivemos? Como podemos reacender o sonho que se encerra nela para as gerações mais jovens - para quem a ditadura é uma referência longínqua? Talvez recuperando para o espaço a experiência das nossas vidas a possibilidade de uma transformação social que nos leve para lá das fronteiras do possível e do imediato. Não tenho uma resposta, ninguém sozinho tem. Talvez todos juntos a tenhamos. Precisamos de tirar o passado do seu santuário e lançá-lo para o meio da rua, onde se desenrolam as vidas das pessoas.
Quero terminar dizendo que este não é um texto de desespero ou de conformismo com a inevitabilidade da ascensão do ódio. Toda a gente, nestes dias, se apressará a prescrever remédios para o problema com o qual nos confrontamos. Esta é apenas uma pequena contribuição. A esquerda sempre foi pródiga nas frases que nos inspiram à esperança nos momentos de desânimo. A canção com a qual comecei este texto. O poderoso discurso de Allende das alamedas para os homens livres. Termino com o axioma pelo qual confesso a minha preferência (escrito por um homem que morreu na prisão): vamos em frente, sim, com pessimismo do intelecto mas otimismo da vontade.
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