Opinião

Ninguém diz a verdade aos descontentes

Ninguém diz a verdade aos descontentes

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

Raramente se fala aos que se queixam. Toda a política é apresentada como se estivesse ou fosse ficar tudo bem. Não está, nem vai ficar. Mas pode ser pior

De cada vez que a Comissão Europeia apresenta uma nova proposta, ou que o Parlamento Europeu e o Conselho a aprovam, com as respetivas modificações, há quase sempre uma garantia de empregos e vantagens económicas associadas. Se um dia alguém contasse quantos empregos se diz que serão criados por cada proposta da União Europeia, é provável que concluísse que precisávamos de fazer magotes de filhos ou de milhões de imigrantes para mão de obra, especializada ou não, para tanto emprego criado. E riqueza. É rara a proposta que não prometa crescimento económico e progresso. Do que nunca se fala é dos que perdem. Ou que acham que perdem.

Há duas cosias estranhas nas manifestações europeias dos agricultores dos últimos meses. A coincidência no tempo, no modo e na vontade de serem autónomas das associações sectoriais tradicionais, por um lado, e o facto de haver quem tenha responsabilidades políticas e esteja surpreendido com as manifestações. Esperavam o quê? Os Gilets jaunes, em França, em 2018 não tinham sido um sinal suficiente de que quando as políticas ambientais acertam nos bolsos dos cidadãos, eles protestam?

As empresas não se manifestam nas ruas, e os sindicatos não costumam manifestar-se a favor dos interesses das empresas dos seus trabalhadores, mas o discurso da indústria europeia, um pouco por todo o lado, é de reclamar dos custos e obrigações impostas pelas políticas ambientais. Também aqui, o estranho é a surpresa de quem, fazendo políticas, perece não estar à espera de que as medidas tenham custos. Mesmo quando têm virtudes ambientais e, a médio prazo, económicas também.

Com a imigração passa-se um pouco o mesmo. A Europa é suposto ter regras de admissão de estrangeiros, como todos os países do mundo. E ter quem queira entrar apesar das regras, como todos os países do mundo mais ricos que quase todos os outros. A pressão migratória, (chamemos-lhe assim, mas também podíamos chamar atracção migratória), é muito menor do que alguns discursos parecem fazer crer. Segundo dados oficiais de 2022, os cidadãos não europeus residentes na União Europeia representavam 5,3% da população. Se somarmos os que têm cidadania europeia mas nasceram foram, chegamos ao nada estratosférico número de 8,5% da população. Em todo o caso, é evidente que a população migrante tem crescido. Alguém que pense sobre política consegue estar genuinamente surpreendido por estes fluxos criarem resistências sociais e políticas? Nunca lhes tinha ocorrido que isso poderia acontecer?

E, no entanto, raramente se fala aos que se queixam. Quando não se tratam mesmo como relíquias de um mundo retrógrado que devem ser desconsiderados. Tudo é apresentado como se estivesse ou fosse ficar tudo bem. Não está, nem vai ficar.

Quando a guerra da Ucrânia começou, foi das poucas vezes que se ouviu falar dos custos de fazer o que estava certo e era necessário. Úrsula von der Leyen, mais que todos, mas não só, disse com clareza que apoiar a defesa da Ucrânia teria um custo. Mas que era um preço que se justificava pagar. E não apenas por razões morais.

Há uma espécie de dissonância cognitiva pagnlossiana que faz com que tudo seja sempre apresentado como o melhor dos mundos. O estranho não é que haja quem se desiluda, quem fique a perder, até com medidas justas e necessárias. O estranho é achar estranho que os perdedores, ou os que se acham perdedores (também os há), se queixem e se afastem.

A caminho das próximas eleições europeias - admitindo que, entre dois feriados e umas eleições nacionais disputadas alguém se vai interessar pelo assunto - era bom falar com mais sinceridade. Nem é por a verdade ser moralmente virtuosa. É mesmo por razões políticas. Se a Europa só for boa quando dá fundos, mercados, livre circulação e roaming à borla, fica difícil defender a União Europeia quando o mundo não for uma maravilha. E não é provável que seja, nos próximos tempos.

Se não se perceber que a Europa nos protege, até do que é mau mas podia ser pior, em vez de vender que tudo está bem e, pior, que o que não está é por culpa da União Europeia, vamos acordar surpreendidos pelos que protestarão contra a Europa. E votarão.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate