Não conheci nenhuma Sião do tempo passado nem vivo a Babilónia do mal presente
Quando entenderemos certos versos, se é que alguma vez os entendemos? Penso concretamente nesta estrofe: “Ali, lembranças contentes/ n’alma se representaram,/ e minhas cousas ausentes/ se fizeram tão presentes/ como se nunca passaram”. Memórias contentes toda a gente sabe o que são, mas é preciso serem mesmo antigas para adquirirem o estatuto vetusto de “lembranças”. Quanto a “n’alma se representaram”, seria mais cómodo dizer “na recordação”, ou “na consciência”, mas Camões tinha essas palavras à disposição e não as escolheu. Que as “cousas ausentes” se façam presentes exige um qualquer trabalho, uma reminiscência, uma anamnese, e quem nunca teve essa experiência fugaz? Podemos não ser, como Camões, um “Proust da Renascença” (o epíteto é de Jorge de Sena), mas todos fazemos presentes coisas ausentes, a começar pelos nossos mortos. Falta saber o exacto grau dessa presença, se é a presença da lembrança ou aquela presentificação que algumas pessoas em luto dizem experimentar. Até porque o verso “como se nunca passaram”, que significa “como se nunca tivessem passado”, deixa uma sugestão auditiva de “como se nunca se tivessem passado”: é como se as recordações passadas, mesmo quando regressam na memória ou na imaginação, nunca tivessem verdadeiramente acontecido, ou existissem num limbo hipotético.
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