Opinião

Zuckerberg foi ao senado americano pedir desculpa. E depois?

Zuckerberg foi ao senado americano pedir desculpa. E depois?

Graça Canto Moniz

Professora na Universidade Lusófona e na NOVA School of Law, CEO da FUTURA

O próximo ciclo governativo vai ser uma oportunidade para reiterar e reforçar o compromisso nacional com a transformação digital responsável. Isto não passa por convocar o líder da Meta para pedir desculpa no parlamento português, mas passa por não esquecer o bem-estar das crianças

No final de janeiro deste ano, uma comissão do senado norte-americano para a proteção das crianças convocou os líderes de várias empresas tecnológicas como, por exemplo, Mark Zuckerberg (Meta), Shou Zi Chew (Tiktok) e Linda Yaccarino (X). O momento mais destacado em vários órgãos de comunicação social, da BBC ao India Today, foi a inquirição de Mark Zuckerberg, quando uma senadora republicana declarou que “as crianças dos EUA não são uma prioridade para o senhor, as crianças são o seu produto” e o líder da Meta pediu desculpa às famílias com crianças que sofrem as consequências do uso das redes sociais.

Estas proclamações não são uma grande novidade: há décadas que ouvimos dizer que nós – e nossos dados – somos um produto para as big tech. Por outro lado, estes momentos mediáticos não resolvem problemas e tornam evidente que o debate político e legislativo nos EUA sobre a regulação da tecnologia e das big tech não evoluiu muito nos últimos anos. Apesar disso, a sua importância não deve ser desvalorizada porque coloca um tema estruturante da nossa atualidade na agenda da sociedade civil.

Na Europa não temos tido muitos momentos de mediatismo como este. Mas a União Europeia (UE) tem atuado de outras formas, em particular regulando vários domínios do seu mercado digital. Fê-lo com regulação aplicável aos dados pessoais e não pessoais, com os mercados e serviços digitais e, mais recentemente, com a inteligência artificial (IA). Todos estes diplomas preveem normas que visam proteger as crianças nos meios digitais, ainda que uns o façam com mais intensidade e outros com menos. Por isso, as crianças não estão no centro destas soluções jurídicas mas são um dos seus eixos.

Assim, há espaço para que os Estados-Membros contribuam para uma proteção mais robusta das crianças nos meios digitais. Desde logo, garantindo que quem pode fazer pedagogia de forma eficaz, próxima do tecido empresarial, e fiscalizar o cumprimento da Lei, tem realmente meios para o fazer como, por exemplo, a CNPD. Neste ponto em particular, em vésperas da publicação de novas normas para regular a IA, Portugal vai ter de designar uma autoridade para fiscalizar a aplicação dessas normas e essa decisão ainda não foi tomada. Apesar disto, não faltam exemplos, no setor público e privado, da utilização de sistemas de IA em diferentes domínios.

Mas a presença do Estado não tem de ocupar todo o espaço de intervenção pública. Um exemplo muito recente vem de uma iniciativa que partiu da sociedade civil espanhola chamada Propuesta de Pacto de Estado para proteger a los menores de edad em Internet y las redes sociales. Este pacto, que tem o apoio institucional de algumas autoridades públicas e do governo espanhol que, inclusive, considera o tema estratégico.

O pacto espanhol assenta em vários eixos. Começa por apelar a que o uso compulsivo de tecnologia por crianças, desde os videojogos até às redes sociais, seja reconhecido como um problema de saúde pública. Outro eixo central do pacto espanhol é a educação para a cidadania digital, incluindo a formação das famílias, dos professores, e dos profissionais de saúde, para que conheçam e saibam identificar os perigos para as suas crianças bem como as melhores ferramentas e estratégias para os mitigar. Um outro eixo é uma responsabilização eficiente de todos os agentes implicados, incluindo da indústria, incluindo através do desenho de produtos e serviços digitais que tenham em conta a idade do utilizador e a realização de avaliações de impacto desses mesmos produtos e serviços. Destaco ainda o mesmo apelo que é feito em Espanha e que referi antes: um reforço das instituições já existentes e a designação das autoridades que resultam da legislação da União Europeia.

Em Portugal conheço algumas iniciativas semelhantes como o consórcio português Internet Segura que reúne entidades desde o Centro Nacional de Cibersegurança, passando pela a APAV, até à Altice e à Microsoft, o projeto miudossegurosnanet que existe há vários anos e tem trabalhado muito de perto com as escolas, e algumas iniciativas do .pt e do Incode2030.

O próximo ciclo governativo vai ser exigente do ponto de vista social e económico para qualquer força política que o protagonize. É também uma oportunidade para reiterar e reforçar o compromisso nacional com a transformação digital responsável. Isto não passa por convocar o líder da Meta para pedir desculpa no parlamento português mas passa por não esquecer o bem-estar das crianças no processos de transformação digital, por encorajar as parcerias que já existem na sociedade civil, por continuar a aposta nas literacias digitais prosseguida por este governo e, sobretudo, por dotar de meios e recursos as entidades cuja atribuição legal é precisamente a de fiscalizar os termos da transformação digital. O recente exemplo espanhol poderá ser útil não para replicar na totalidade mas para inspirar a ação governativa nacional.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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