Hoje, quase dez anos depois das primeiras detenções no processo Marquês, foi conhecida a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente ao recurso interposto pelo Ministério Público da decisão instrutória do Tribunal de primeira instância de não pronúncia dos arguidos quanto a parte dos crimes que constavam da acusação.
Qualquer pessoa de bom senso, mais ou menos afeiçoada com as tecnicalidades jurídicas, percebe que não é aceitável que um processo-crime esteja há tantos anos sem que seja proferida uma decisão de absolvição ou condenação dos arguidos.
Não há como escapar à conclusão de que a matriz ética do Estado de Direito fica seriamente comprometida com uma morosidade desta dimensão, num processo em que se discute a responsabilidade de um ex-Primeiro Ministro pela prática de crimes cometidos no exercício de funções. Não há como não esperar um sobressalto da “coletividade pacífica de revoltados”, na expressão tão exata que Torga usou para caracterizar os portugueses.
O insustentável arrastamento temporal do processo Marquês distorce, desde logo, a perceção dos cidadãos acerca do funcionamento do sistema de justiça penal, que é geralmente célere nos casos de pequena e médica criminalidade. Sabemos até que ponto uma perceção negativa nesta matéria contribui para a erosão dos sustentáculos da democracia liberal e se torna pasto fértil para o crescimento dos populismos demagógicos.
A um nível de análise macro, o processo Marquês vem demonstrando a profunda desadequação da lei processual penal vigente para investigar e julgar, de modo eficiente, os processos da chamada criminalidade económico-financeira, que hoje se afirma como transnacional na atuação e sofisticada nos procedimentos, recorrendo a estratégias de defesa marcadas pela hiperlitigiosidade.
Não causa espanto que assim seja. O Código de Processo Penal foi elaborado em 1987, num contexto social e económico que, sob a lente do século XXI, é pouco mais do que paroquial.
O que causa, sim, verdadeiro espanto, é que, depois de tantos apelos e declarações proclamatórias acerca da necessidade de mudança, o poder político persista
em ignorar o problema e demonstre inércia em atualizar a legislação processual penal – em matérias que passam pelas regras de conexão processual, pelos efeitos a atribuir aos recursos interpostos, pela própria configuração da fase de instrução ou pela consagração de mecanismos de gestão processual destinados a ultrapassar expedientes abusivos -, de molde a que as “regras do jogo”, salvaguardado que seja o núcleo inultrapassável dos direitos de defesa dos arguidos, não comprometam o apuramento da verdade material em prazo razoável.
Com isto não pretendo – de todo – subvalorizar as responsabilidades que os profissionais que trabalham na Justiça – juízes, procuradores e advogados – partilham no problema. Também internamente há uma reflexão a fazer sobre as práticas individuais e os modos de funcionamento da organização.
Seja por dificuldades gestionárias dos Tribunais ou por escasso recurso a assessorias técnicas, seja por opções investigatórias do Ministério Público que, visando esgotar a apreciação da matéria ilícita, colocam em segundo plano a eficiência processual, seja, no que respeita aos advogados, pelo exercício do patrocínio de modo desviado relativamente aos deveres estatutários aplicáveis, todos têm a sua quota de responsabilidade.
Mas se os “megaprocessos” são hoje um produto inevitável de uma “megacriminalidade”, não podemos ficar por proclamações meramente retóricas e tempos de ultrapassar os constrangimentos que lhes são inerentes.
Desde logo, com vista a identificar os obstáculos mais relevantes e a avançar soluções, não há muito tempo, os juízes elaboraram uma “Agenda da Reforma da Justiça” (documento já apresentado publicamente na Assembleia da República e que congrega uma reflexão ampla e alargada do judiciário, não circunscrita a estes temas). Mais recentemente, o Conselho Superior da Magistratura criou um grupo de trabalho sobre os processos penais especialmente complexos, cujas conclusões serão em breve divulgadas. É passar das palavras à ação.
Este processo, um dia, há-de chegar a julgamento. Aí também se vão revelar dificuldades há muito diagnosticadas, ao nível da gestão dos tempos e do processo. Pode ser que a experiência agora desenvolvida pelo Conselho Superior da Magistratura, com a criação de uma equipa multidisciplinar e digitalmente capacitada para prestar apoio ao julgamento no caso de criminalidade económico-financeira complexa BES/GES, possa ser replicada com êxito.
Que, ao menos, a última década do processo Marquês seja catalisadora da mudança. O tempo urge e “a longo prazo estamos todos mortos.”