Em Washington, Joe Biden tem enfrentado cisões e sentimentos heterógenos no que concerne à viabilidade da continuidade do apoio norte-americano ao esforço de guerra ucraniano. No Congresso, os republicanos mostram-se especialmente descrentes acerca desta viabilidade e estão a investir num posicionamento oposto àquele que tem sido o habitual e reiterado pela administração Biden. Para o Presidente americano, a necessidade de continuar a ajudar a Ucrânia é inequívoca e fundamental. Por um lado, porque defender a Ucrânia significa defender o “lado bom”, a liberdade, o direito à soberania dos Estados e à autodeterminação dos povos, a democracia e a luta contra o autoritarismo. Por outro lado, porque deixar de a defender significa oferecer um presente de Natal adiantado a Vladimir Putin.
Biden está altamente consciente da possibilidade de abertura de uma fissura fatal ao permitir que a Rússia leve a sua avante em território ucraniano: depois do Donbass, toda a Europa. O projeto putinista, não sejamos ingénuos, não se esgota na Ucrânia. Mas pode esgotar-se, se o Ocidente se unir e compreender como a Ucrânia, atual vítima das pretensões imperialistas russas, é apenas o flanco Leste de todo o Velho Continente. O que está, pois, em jogo é a segurança coletiva da Europa e dos europeus, da estabilidade global alcançada no pós-Guerra Fria e que está gradualmente a ser substituída por uma espécie de nova Coexistência Pacífica entre Estados Unidos e Rússia. O que nos permite classificar como pacífica esta coexistência é apenas e só o facto de a Ucrânia não ser um membro da NATO. Caso contrário, e como o próprio Presidente americano terá dito, o que estaríamos a viver em pleno século XXI seria uma Terceira Guerra Mundial.
Recentemente, num apelo ao não bloqueio da ajuda militar à Ucrânia por parte dos republicanos, Biden chamou a atenção para a forma como uma vitória russa no Donbass seria a engrenagem de Putin para atacar um país da NATO. E, apesar dos riscos associados a este tipo de investida – muito distintos dos riscos de atacar um país como a Ucrânia, que não é membro da NATO, – a verdade é que Putin já nos deu motivos mais do que suficientes para que não possamos tomar como garantido o seu entendimento sobre estes riscos. O artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte deixa claro que um ataque armado a um membro da NATO é considerado um ataque a todos os membros, tornando quase quimérica a ideia de imaginar que Putin acreditaria na hipótese de lutar contra 31 países. Mas quem é que imaginou, em 1999-2000, que o homem que colocara a implosão da União Soviética no lugar de pior desastre geopolítico do século XX poria em prática uma “operação militar especial” em fevereiro de 2022? O que aqui separa o alerta de Biden de um certo idealismo republicano chama-se, portanto, prudência.
Em resposta às declarações de Biden e a esta narrativa de apelo constante ao suporte da causa ucraniana, Putin considerou “sem sentido” a ideia de atacar um país membro da Aliança Atlântica, afirmando em entrevista à televisão estatal de Moscovo que “a Rússia não tem qualquer motivo ou interesse – geopolítico, económico, político ou militar – para lutar com países da NATO”. No contexto da mesma entrevista, o Presidente russo aproveitou ainda para declarar o “contrassenso” de Biden como uma tentativa do líder norte-americano para justificar o falhanço da sua própria política e do seu próprio tumulto interno.
Putin está simultaneamente a desviar a atenção Ocidental de uma possível investida militar num país NATO e a confirmar que não cessará os seus esforços em território ucraniano. Refere-se a um desinteresse evidente sobre países membros da Aliança Atlântica, mas nunca a um desinteresse semelhante sobre a Ucrânia. E essa é provavelmente a parte mais importante das suas declarações: não o que foi dito, mas o que não foi.
A Ucrânia, atente-se, ocupa um lugar de destaque no conceito estratégico russo desde que Putin chegou ao poder. Este estatuto denomina-se “estrangeiro próximo” e serve para designar um tipo de estrangeiro inteiramente ligado à história e ao ADN imperialista da Rússia e do próprio Presidente Putin: integram o “estrangeiro próximo” todos os países formalmente soberanos no pós-1991, isto é, como resultado do colapso da União Soviética. Estes países, uma espécie de cordão sanitário a proteger fisicamente a mãe-Rússia, não são percecionados por Moscovo como os restantes, porque, na visão paternalista da liderança russa, nunca foram nações verdadeiramente independentes do poder central moscovita. De algum modo, isto explica que o foco de Putin esteja, pelo menos por agora, centrado no teatro de guerra ucraniano e que, de facto, e repito, por agora, não haja grande margem logística, temporal ou mental para outras investidas por parte do Kremlin noutros cenários e/ou regiões potencialmente interessantes para a Rússia.
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