Com a inteligência artificial… onde fica a autêntica?
Se eu desenhasse um MBA em todos as cadeiras 60% dos conteúdos teriam de ser de grandes falhanços
Consultor e Professor de Gestão de Talento e Liderança no ISCTE | Executive Education e IPAM. Autor dos livros “Disse-me um velho marinheiro | um guia para tempos confusos” e “Tudo o que o velho marinheiro não me disse”
Se eu desenhasse um MBA em todos as cadeiras 60% dos conteúdos teriam de ser de grandes falhanços
Já todos ouvimos (ou proferimos) a célebre expressão “Ah, aquilo já não é o que era…”. Por norma, falamos de comida. Pode ser o molho da Francesinha de um restaurante conhecido, ou o famoso preguinho picado da Cufra, que já não é o que era. Perdeu a autenticidade, vítima das sucessivas tentativas de imitação da receita original que, por mais fiel que tente ser, acaba sempre por resultar em algo ligeiramente diferente. Há algo que se perde no processo de transformação e que não é visível. A energia que se dissipa e que leva consigo o essencial, a alma daquela receita, daquele quadro, daquele livro… seja qual for o produto final.
A inteligência artificial, que já cá anda há uns tempos, mas está agora, mais que nunca, nas bocas do mundo não é mais que a arte da imitação perfeita do original. Mais que isso, aquela que se chama agora Inteligência Artificial Generativa, é a arte de produzir artificialmente, o que nunca existiu. Mas deixemos as explicações técnicas para outro artigo. Aqui o que interessa é que, no meio deste frenesim de ferramentas que se ultrapassam umas às outras e da corrida das empresas para dominar e implementar todas elas, já alguém parou para perguntar – porquê? Porquê esta azáfama agora? Porque é que agora é o timing perfeito para o “boom” da inteligência artificial? Não que haja necessidade de se fazer uma anatomia à emergência de tendências, especialmente as tecnológicas. Mas, pessoalmente, considero que esta merece a nossa atenção porque há, na minha opinião, dois motivos por trás disto que dizem muito sobre os tempos que vivemos.
Porque não?
O primeiro é simples – porque podemos. E conseguimos. Temos a capacidade tecnológica e o conhecimento necessário para fazer evoluir a inteligência artificial de forma nunca vista. E se o conseguimos fazer, então porque não? Aquela vontade inata de “show-off” do ser humano, de mostrar que consegue explorar mais, ir mais além, superar-se a si mesmo, ainda que não se pondere a 100% as consequências de mais uma invenção. Tal como aconteceu com a exploração do petróleo, com a produção de carros em massa e tantos outros “avanços” de base tecnológica que estiveram na origem de grandes reviravoltas sociais – e, agora, de tantos desastres ambientais. Também podíamos fazer muitas outras coisas para as quais temos conhecimento, mas optamos pelo que dá menos trabalho e, de preferência, trabalho nenhum.
É verdade que existe um debate sobre o “bom” e o “mau” da Inteligência Artificial ao ritmo que ela está a evoluir. Mas isso não impede nem trava a corrida dos gigantes. Acontece paralelamente ao surgimento das versões 2.0, 3.0... das ferramentas que imitam a fisionomia humana, das que escrevem, pintam ou cantam por nós. E, se isso é possível, se posso ter uma ferramenta como o ChatGPT a fazer o trabalho por mim ou se posso fazer um brilharete a apresentar uma imagem que nem fui eu que fiz, porque não? Só alguém com um sentido de ética muito comprometido é que não o faria…
O fim da era do fracasso
A segunda prende-se com algo mais complexo – que é uma espécie de 2 em 1. Começamos com a autoestima. Queremos tanto trabalhar naquilo que é a imitação perfeita porque estamos fartos de nós. Já não nos conseguimos aguentar. Não temos tempo para nos cuidar, não gostamos do que produzimos ou de quem somos e,
consequentemente, achamos que a inteligência artificial é o que nos permite criar ma versão melhor de nós próprios, enquanto indivíduos, sociedade, artistas, etc, sem que para isso tenhamos de investir o nosso precioso tempo – e de forma a garantir que somos sempre bem-sucedidos nessa missão de melhoramento.
Na “vida real”, a coisa pode descambar. Podemos querer melhorar o rosto, mas, se a cirurgia ficar malfeita, teremos de lidar com o fracasso. Podemos querer escrever um livro, mas, se nos faltar a inspiração ou as palavras, corremos o risco de ficar com um projeto na gaveta. Outra vez o fracasso. A segunda parte deste 2 em 1. A verdade é que não temos autoestima para lidar com o fracasso. Falta-nos a resiliência de outros tempos, de quando não tínhamos hipótese se não fazer, com as nossas próprias mãos, duas, três, quatro, cinco vezes – ou as que fossem preciso – para a coisa ficar bem-feita. Porque não era um qualquer programa de computador ou caneta 3D que ia fazer aparecer, como que por milagre, a cama onde nos íamos deitar ou a cadeira ou nos íamos sentar.
Com o tempo, aqueles que eram os ofícios - arte de desempenhar uma determinada tarefa – foram-se tornando “empregos” e o trabalho foi padronizado. Os profissionais tornam-se em recursos humanos, as artes em tarefas. Nada contra a evolução que é, também ela, natural e necessária. Mas tenho algum ressentimento em relação à forma como evoluímos por forma a suprimir alguns daqueles que são os instintos primários mais necessários à continuação da nossa própria espécie. Como é o fracasso. Não há nada de bom em eliminar o fracasso. Por mais cliché que esta afirmação possa ser, ninguém aprende sem errar. Se eu desenhasse um MBA em todos as cadeiras 60% dos conteúdos teriam que ser de grandes falhanços. É impossível melhorar se não soubermos o que estamos a fazer de mal e se não o experienciarmos. Mas foi isso mesmo que fizemos e é isso que estamos a fazer com a inteligência artificial – a arranjar maneira de não termos como fracassar. Efetivamente, hoje não tem como não dar certo. Com mais ou menos ferramenta, a coisa acontece.
Sinto, muitas vezes, que vivemos numa farsa. A autoestima social está num nível baixíssimo. E se não gostamos de nós e não temos vontade de nos cuidar, então também não interessa o que fazemos ao outro ou mesmo ao nosso meio-ambiente. É uma bola de neve.
No limite, se tudo correr mal, estarão cá os robôs a tomar conta disto que não deixam de ser o legado humano e, assim, continuamos a existir de uma maneira ou de outra. Afinal, um grande bem-haja à Inteligência Artificial.
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